sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Preludio de uma Guerra

Por Jessé A. Chahad

O filme é um documentário que mostra a visão do Governo americano sobre a invasão japonesa na Manchúria, a conquista da Etiópia pelos italianos, e o início da movimentação das tropas nazistas em direção ao Leste Europeu. Em outras palavras, insinuam um movimento de conquista mundial praticado pelos governos fascista.
Os créditos da introdução confirmam o caráter de oficialidade do documento, e reforça a idéia de construção do fato histórico a partir da visão governamental, que procurava justificar a participação dos Estados Unidos no conflito. O filme foi exibido primeiramente apenas para o público militar, e a partir da percepção da eficácia de sua mensagem, foi liberado pelo Governo para o público em geral, desconfiado e temeroso com a globalização do conflito que iniciara na Europa.
A indústria de Hollywood, às vésperas da Segunda Guerra Mundial produzia tantos filmes quanto todas as outras indústrias combinadas, quase dez filmes por semana, e acompanhava o ritmo da corrente Revolução Industrial, que se encontrava em seu auge, e curiosamente após o termino da Guerra havia desmoronado[1]. A propaganda de guerra eficiente escondia as mazelas que acabariam atingindo diversos setores da economia americana, questionando a validade de sua intervenção.
O principal elemento de convencimento trazido pelo filme, é a busca pela Liberdade, conceito que será apropriado pelos Aliados a fim de glorificar a carnificina realizada durante a Guerra. Libertar os povos dominados pelo Nazismo e Fascismo consistia em menor parte conceder a eles autonomia, e sim impor sua política. Sob a bandeira americana se escondiam novos planos de reorganização e dominação mundial.
Na cena em que aparecem dois globos terrestres em rota de colisão, um mais claro, representa os “Aliados da liberdade”, e um outro mais escuro, “o eixo do mal”. A simplificação entre mundo do bem versus mundo do mal, em outras palavras o maniqueísmo propagado pela cena era suficiente e eficiente para a inteligência de uma população com alto índice de analfabetismo[2].
A aprovação popular da participação na Guerra era fundamental, pois propiciava menor crítica à quantidade de dinheiro a ser gasta com tal projeto, e ainda provocava no público o sentimento de responsabilidade perante o conflito, pois se eram tão nobres e justos os ideais libertários e de igualdade, que a população não tinha motivos para não a endossar.
Sabendo que o documentário é o gênero cinematográfico que carrega o estigma compartilhado pela fotografia – de retrato fiel da realidade - devemos entender que o documentário não pode ser considerado um reflexo direto da realidade, mas sim como trabalhos nos quais as imagens dão forma a um discurso narrativo com um significado determinado[3]. Porém, para o público considerado comum, essa especificidade não é levada em consideração, e muitas vezes o Cinema é entendido como capaz de reproduzir fielmente os acontecimentos de um determinado fato histórico, problema que pode ser tratado por aqueles que se dedicam ao ensino da História.

Cinema no ensino de História: O Filme e suas possibilidades
No campo do ensino da História, os filmes de cunho histórico são fontes inesgotáveis de possibilidades de propor discussões e provocar a reflexão no estudante.
Se considerarmos que o caráter visual da sociedade atual se sobrepõe aos demais sentidos na percepção e no entendimento da realidade, é razoável a afirmação de que o Cinema é atraente e atinge quase em sua totalidade o dia a dia do estudante, seja do ensino regular ou mesmo superior. A partir da exibição de filmes que trazem em seu conteúdo fatos históricos a serem estudados nos programas tradicionais, o profissional dedicado ao ensino de História consegue ao menos atrair mais atenção para o assunto, o que já é desejável em tempos de tão grande desinteresse pelo estudo por parte dos alunos.
A partir deste primeiro momento, a intenção seria realiza debates acerca do assunto trazido pelo filme, e como os fatos foram tratados, a fim de identificar possíveis interpretações e pontos de vista expressos por detrás das imagens, suscitando a curiosidade que levará naturalmente à pesquisa sobre o tema.
A tão criticada indústria cinematográfica hollywoodiana serve de exemplo não apenas por dedicar tantos recursos à produção de filmes “históricos”, que abrangem a sua própria História recente, além de atingir temas Clássicos, como a Guerra de Tróia, ou ainda Rei Arthur, que de longe procuram se inserir no caráter do cinema real, de fidelidade, mas buscam a verossimilhança em suas narrativas, que são sucessos de bilheteria e despertam de alguma forma, por menos louvável que seja, o interesse sobre temas históricos.
No Brasil, são pouquíssimos investimentos na produção de filmes, históricos ou não; a indústria e o mercado cinematográfico tentam ressurgir após um longo período lacônico em sua produção, e apenas no início da década de 1990, recomeçaram a surgir com mais força. Evidentemente, uma maior produção de filmes sobre a História do Brasil, produziria também um aumento do público interessado em História, além de possibilitar novas visões e possíveis revisões de alguns momentos cruciais do nosso país, como as discussões proporcionadas pelos diversos filmes feitos sobre a época da Ditadura Militar.

Conclusões
Ao se propor a utilização de filmes, documentários ou mesmo comerciais, no debate e no ensino de História, se propõe acima de tudo a busca de adequação do ensino à demanda da sociedade, a fim de despertar o interesse para a História, e consequentemente propor a reflexão sobre o assunto.
A partir desta proposta, demonstrar ao estudante a potencialidade do Cinema como formador de opinião, e mais, como construtor de memória e idealizador de projetos que contam com uma intencionalidade, e que são produtos de um tempo histórico único, de uma sociedade com características próprias. Despertar essa consciência no estudante por si só já pode ser considerado um resultado positivo.
Para os historiadores, mais importante do que condenar a presença de duendes e dragões, personagens comuns em filmes que remetem à Idade Média, é explorar a potencialidade deste tipo de documento, e como ele pode ser útil para a produção de conhecimento. Cada filme tem suas características próprias de estilo, ação, suspense, comédia, terror, etc.. E o documentário é mais uma forma de expressão cinematográfica, com a especificidade de carregar em si o caráter de oficialidade, de versão “original” da História, que cabe ao historiador problematizar e debater em sala de aula.
Uma questão a ser levantada, por exemplo, pode ser o fato de como algumas lideranças mundiais se apropriam de valores, como a liberdade, igualdade e democracia, e, além disso, constrói uma nova significação destes valores, a fim de justificar um propósito, como no caso da Segunda Guerra, a necessidade da emergência dos Estados Unidos como potência militar e econômica, que deveria liderar o mundo com seus ideais de justiça e libertação.
Ainda hoje podemos identificar essa prática na sociedade americana, altamente militarizada e sempre disposta a endossar um conflito, uma invasão de um país qualquer que não dê liberdade ao seu povo, que não exerça a democracia. Por outro lado, os verdadeiros motivos que deflagram a maioria dos conflitos desde a Primeira Guerra, são quase sempre relacionados às questões de territorialidade, em outras palavras, à conquista e dominação de territórios que dispões de recursos estratégicos, ligados a algum setor da economia.
A produção de filmes de guerra é quase concomitante com a produtividade da indústria bélica estado-unidense, e ambas aumentam seus lucros, e renovam suas tecnologias de maneira impressionante, que nos levam a crer que a relação entre Cinema e História está muito mais presente no dia a dia do que podemos imaginar, e que a construção da memória de um povo, mais ainda, a construção de um senso moral comum de justiça e caráter, passa pelo crivo da indústria cultural e com ela se entrelaça, pois fazem a cultura visual e a sociedade personagens de um mesmo longa metragem.








Bibliografia

CHARNEY, Leo & SCHWARTZ (orgs), Vanessa R. O cinema e a invenção da vida moderna, Cosac & Naify, São Paulo, 2001.

FERRO, Marc, Cinema e História, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992.

GEARY, Patrick J. O mito das nações – A invenção do nacionalismo, Conrad, São Paulo, 2005.

HOBSBAWM, Eric J., A era dos Impérios, 1875-1914, Paz e Terra, São Paulo, 1988.

HOBSBAWM, Eric J., A era dos Extremos, O breve século XX-1914-1991, Cia. das Letras, São Paulo, 1995.

LE GOFF, J. e NORA, P. (Orgs) História: novos objetos, Rio de Janeiro, 1976.

MENESES, Ulpiano Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório”. Revista Brasileira de História, ANPUH, São Paulo, 23, 2003.

ORR, John, Cinema and modernity. Polity Press, Cambridge, 1993.

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ROSENSTONE, Robert, “História e imagens, História em palavras: reflexões sobre as possibilidades de plasmar a História em imagens”. O Olho da História-Revista de História Contemporânea. Salvador, 1 (5): 105/116, set. 1998.

WILLIAMS, Christopher (Org), Realism and Cinema, Routledge and Kegan
Paul, New York, 1980.
[1] Eric HOBSBAWM, As Artes, 1914-1945, in: A Era dos Extremos, p.195.
[2] Idem, p.193.
[3] Robert ROSENSTONE, História em imagens, história em palavras: reflexões sobre as possibilidades de plasmar a história em imagens, p. 08.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

O Cidadão e o Poliítico - Personagens da República Romana

Por Jessé A. Chahad

Ciente de todos os problemas que podem estar contidos nas formas tradicionais de se estudar as interpretações acerca do Mundo Clássico, e mesmo as implicações de se utilizar desses conceitos hoje debatidos, este trabalho não estará livre de possíveis anacronismos e poderá ser entendido como a proposta de um exercício de leitura crítica de algumas idéias apresentadas, quando possível fazendo descontruções, ou levantando novas questões pertinentes ao entendimento da proposta trazida.

Claude Nicolet, francês, é Historiador especialista em questões da República, e professor emérito da Sorbonne. É autor de três relatórios sobre a educação cívica para os ministérios da Educação (1984), da Defesa (1989) e do Ensino Superior (1996). Entre outras obras, podemos citar La République en France : état des lieux (1992) e Histoire, Nation, République, (2000).Segundo Nicolet, a constituição de uma República deve conter como fator indispensável a construção do conceito de cidadão, feita através de um sistema de educação que possa garantir a criação e o cumprimento de um corpo jurídico que teoricamente deve ser aplicado a todos.

A principio, podemos dividir o texto em quatro partes, que seguem a lógica do raciocínio utilizado pelo autor. Seu objetivo é determinar a importância de dois personagens ( o cidadão e o político) no processo de formação da República de Roma, se utilizando de documentos de caráter censitário, e também analisando decretos e publicações em busca de delinear a trajetória das duas figuras.
A primeira parte ( pág. 21 a 22) é uma breve introdução que muito tem a dizer sobre a tônica do texto. Nicolet toma como exemplo o processo da Revolução Francesa para demonstrar os problemas de se recorrer ao modelo de organização cívica da “República Romana” como exemplo a ser seguido na construção de um corpo político ideal e representativo. A apologia à vida citadina e à um sistema de educação são alguns conceitos presentes nos escritos de Tácito, Tito Livio, e Plutarco. Esses autores foram retomados pelos escolásticos, atravessando a Idade Média, e chegando aos tempos modernos do iluminismo, sendo celebradas por alguns pensadores que buscavam argumentos eficientes para a organização de uma vida política em processo de transformação.
O conceito de cidadania deveria ser interpretado de maneira que representasse a princípio um elemento de unidade entre o povo, fator necessário à nova ordem, a do nascimento ou construção dos Estados-nações. Citando passagem do texto, (...) os fundadores da liberdade moderna (entre os quais os jacobinos franceses) partiam à reconquista de uma Antiguidade perdida.
Seguindo a divisão proposta, na segunda parte do texto (pág. 22 a 30), Claude Nicolet vai tentar construir o conceito de cidadão e de cidadania, revelando as dificuldades que surgem ao tal definição, e a impossibilidade de se conseguir determinar de maneira conclusiva ou determinante qualquer tipo de conceito. Isso se evidencia na medida em que o autor apresenta de maneira extensiva as condições que permitem a classificação de um individuo como cidadão ou não, de acordo com o contexto do momento.
Diversas mudanças aconteciam quase sempre dentro da esfera que envolvia as obrigações civis que permitiam a prática da cidadania: os deveres militares e as guerras, a participação no sistema fiscal e político. Em suma, o papel de cada um dentro de um estatuto jurídico, uma comunidade de direito, e principalmente de interesses. Porém não devemos entender que se tratava de uma comunidade igualitária, e dentro dos argumentos apresentados estão marcadas as diversas hierarquias e diferenças sociais.
Seguindo seu argumento, na terceira parte, (pg. 30 a 45) o autor vai selecionar três aspectos da vida cívica, considerados fundamentais para a formação da cidadania: a atividade militar, a política, e a classe política. Ou seja, todo individuo educado militarmente que pudesse ser mobilizado, ou qualquer contribuinte que ainda pudesse se candidatar a uma função cível, integrando o corpo político, poderia participar, de forma limitada é claro, da vida da cidade, do sistema dito representativo.
A atividade militar exigia um contingente cada vez maior e desequilibrava as contas do estado, não só nas campanhas mal sucedidas, mas também na medida em que novas conquistas alargavam os limites territoriais e sobrecarregavam a arrecadação de tributos, a distribuição de terras como parte do soldo se tornou um problema a ser resolvido com a criação de um salário em moeda. As convocações periódicas gradualmente deram lugar a um exército permanente, profissional e proletarizado, a serviço de uma política imperialista (grifos meus, termos utilizados pelo autor).
A política era instrumento que funcionava de acordo com a hierarquia, e permitia através das assembléias, a soldados e contribuintes a participação de maneira efetiva no campo em que se travavam os debates e se reclamavam os direitos prometidos pelo sistema representativo. Os indivíduos considerados pobres, ou que não faziam parte de nenhuma agregação, como por exemplo, tribos ou centúrias, dificilmente encontravam meios de representação e simplesmente eram excluídos do processo de eleição. Mais um problema do modelo visitado pelos pensadores modernos.
A formação de uma classe política é tratada a parte pelo autor, e se faz necessária a construção da figura do homem político, que chega às vezes a se confundir com a própria noção de cidadão. As tradições patriarcais e oligárquicas instrumentavam a formação da classe política que aliada a um forte exercito, garantiria por um tempo a sobrevivência da República.
Na última parte, (pág. 46 a 48) o autor irá concluir seu pensamento, sugerindo que a partir destes preceitos basilares, deve se somar a condição natural, ou existencial do homem político romano, e as características que ela lhe impõe, e que também o definem. Além disso, nos leva a pensar nas conseqüências da formação deste sistema, que funcionou durante um período importante, mas que não impediu a queda da República.
Com isto, a leitura do texto nos leva a crer que mesmo com a utilização de arcabouços teóricos que pretendem eleger o modelo de sociedade civil romana como ideal a ser aplicado em outro contexto, esse preceito deve ser cuidadosamente colocado em dúvida. Todas as imperfeições do modelo, que o autor nos traz, têm como objetivo também demonstrar que não existe um molde ideal para a formação de uma República. E ainda, que a noção de liberdade não está associada necessariamente ao conceito de república, ou ainda se quisermos de democracia. Esse fator confirma a imprevisibilidade da História, que não pode ser construída a partir de experiências anteriores.
A diferenciação entre homem romano e o cidadão romano feita por Nicolet ao decorrer de seu trabalho, mostra também que o a quantidade de cidadãos em Roma, sempre era bem inferior ao número de homens comuns, evidencia de que por mais participativo que o sistema se propunha a ser, era na verdade uma minoria que estava efetivamente no controle das decisões. Fator que mostra uma sociedade de privilégios, desigualdades e conflitos internos por poder, que também fizeram eco na modernidade. E por que não na contemporaneidade?

domingo, 1 de julho de 2007

Nações e nacionalismos. A aventura brasileira

Por Jessé A. Chahad

No período constituído entre 1848 e 1870, o mundo passa por uma tendência de formação de Estados-nações. França, Itália, Alemanha e também fora da Europa, nos Estados Unidos, a tentativa de manter unidade perante os perigos da fragmentação que resultaram na Guerra Civil, mesmo Restauração Meiji no Japão poderia ser entendida como aparecimento de um sentimento nacionalista. A transformação dessa nação em Estado soberano, com território coerente, definido pela área ocupada por seus membros, que por sua vez era definida por sua história, cultura comum, composição étnica e língua comum[1]era necessária ao Brasil como parte desta tendência global.
Porém, devemos levar em consideração o que Hobsbawm nos lembra sobre a diferença fundamental entre o movimento para fundar Estados-nações e o “nacionalismo”: o primeiro era um programa para construir um artifício político que dizia basear-se no segundo[2]. Ou seja, era possível ser alemão mesmo não estando na Alemanha, o que criava um conceito de nações multinacionais, devido ao forte fluxo migratório mundial.
O Brasil não seria multinacional, pelo contrario, absorveriam os imigrantes na própria nação, o que veio a acontecer mesmo quando as comunidades imigrantes não perderam sua identidade no ”caldeirão das raças” do novo mundo, permaneceram e se tornaram conscientes de sua condição de italianos ou alemães, por exemplo. Era preciso evitar a mistura de raças, visto que no Brasil a maioria de negros era vista como prejudicial ao desenvolvimento da civilização, onde quanto maior a migração dos povos, tanto mais rápido o desenvolvimento das cidades e da indústria, que lançava massas desenraizadas umas contra as outras, e tanto maior a base para a consciência nacional entre os desenraizados[3].
Portanto era preciso um reforço ao caráter civilizatório que significara a colonização brasileira, mas agora à luz da modernidade, do século das revoluções cientificas e surgimentos de novos ideais políticos e da luta de classes que geravam uma demanda por uma centralidade e unidade em defesa de seu território e auto-afirmação como soberanos perante o cenário internacional. O distanciamento do passado seria conseguido através da “revogação da velha ordem colonial e patriarcal, com todas as conseqüências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continua a acarretar” [4] .O desenvolvimento cafeeiro, no oeste paulista, o desenvolvimento da comunicação e dos transportes através da construção de vias férreas criaria uma relação de interdependência entre a cidade e o campo, substituindo o total isolamento antes marcado pela ausência de um mercado interno e do crescimento polarizado e desordenado. Tratando dos ideais da sociedade, Sergio Buarque de Holanda afirma que o modelo ideário arcaico implantado anteriormente, após a independência tentou ser substituído pelo modelo importado em parte das idéias da revolução francesa, o que teria sido problemático mais uma vez, causando apenas uma mudança de aparato, e não de substância.
Os investimentos em cultura feitos por Pedro II proporcionaram uma monumentalização do passado, necessária a construção do conceito de nação e com a ajuda do romantismo foi articulada por literatos, pintores e reforçada pelo caráter pictórico das primeiras fotografias. A literatura romântica indianista, de Gonçalves Dias e José de Alencar participava talvez sem saber do projeto de mitificação da “moderna” sociedade brasileira em construção através de obras como O Guarani, e Iracema. A Academia de Belas Artes trabalhava em função de um academicismo de obras neoclássicas, obras históricas e fundamentais para a consolidação de um passado glorioso. Vítor Meireles e Pedro Américo foram representantes importantes no sentido da construção das novas feições visuais da nação. Obras como A batalha do Avaí, e O grito do Ipiranga, respectivamente de 1877 e 1888 foram feitas por encomenda do Imperador.
Sabemos hoje através dos estudos da historiadora Ana Maria Mauad que Pedro Américo chocou ao retratar com exímia fidelidade os movimentos do cavalgar das figuras eqüestres em suas pintura, revelando ângulos inesperados e realistas e que foram inspirados pelos primeiros estudos de movimentos realizados pelo fotógrafo Edward Muybridge, que Pedro Américo teve contato durante suas pesquisas para realização de suas obras.
Apesar da associação oficial com o índio, teorizada em muito por alguns intelectuais do IHGB, bancados por D. Pedro, não podemos esquecer de forma alguma a contribuição dos africanos para a jovem nação que se formava e é por meio destas festas que esta população dialogará com o Império, influenciando e sendo influenciada por este. Podemos dizer que o próprio D. Pedro II e a monarquia compactuaram com esta cultura, que como diz Schwarcz, “ao mesmo tempo em que se europeizou com sua presença, tornou-se mestiça, negra e indígena no convívio”, tornando-se ele um “monarca com muitas coroas”, pois nestas festas o elemento imaginário de fundo monárquico estava sempre presente, fosse nas cavalhadas ou no mito messiânico do sebastianismo (estes de fundo português), fosse nas congadas, festas do Divino, batuques, etc., onde o monarca brasileiro dialogava constantemente com outras “realezas”, inclusive reis africanos eleitos no Brasil, nas congadas, por exemplo. Mesmo na representação oficial permeada pelo romantismo indigenista, este movimento de influência e re-influência contínua se faz presente, pois se da mesma forma que na literatura e na pintura os índios nunca foram tão brancos, o monarca e a cultura brasileira tornavam-se cada vez mais tropicais, em movimento análogo ao das festas já citados acima.
Inclusive, não podemos deixar de citar apesar da popularidade que a monarquia sempre gozou no Brasil, a figura do imperador começa a perder esta popularidade a partir do momento em que D. Pedro II abandona esta representação de “monarca tropical” e aos poucos vai deixando de lado o caráter “sagrado” e “divino” de sua realeza para assumir a pecha de “monarca cidadão”. Com seu livro sempre a mão e a pose de erudito, mecenas do progresso, que tentava passar principalmente ao olhar estrangeiro que, no entanto, sempre deu mais atenção ao nosso lado exótico e ambíguo.
[1] Eric J.HOBSBAWM, A era do Capital, p.128.

[2] Idem, p.133.

[3] Eric J. HOBSBAWM, A era dos Impérios, p.220.

[4] Sergio Buarque de HOLANDA, Raízes do Brasil, p.180.

Civilização Tropical

Por Jessé A. Chahad
Nos tempos findos dos Impérios, um dos principais objetivos assumidos pela elite era o desafio que representavam a formação da identidade brasileira, ou seja, a construção com pretensões oficiais de um caráter comum ao nível nacional. Ora, pensar no brasileiro de forma homogênea e unificada seria uma enorme tarefa para o recém formado governo, visto o tamanho de nosso território e a sua grande diversidade étnica e cultural, dificuldade esta presente até o inicio do século passado (se não até hoje), exemplificada pela frase de Sérgio Buarque de Holanda: “Somos desterrados em nossa própria terra”.
    O projeto tomaria grande parte da agenda dos primeiros governos, tornando-se uma busca ampla e constante, e se articulando por todo o tecido social. Temos como principal instituição criada nesta época, e que tinha este papel, o de criar uma identidade digna para o Brasil, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Criado em 1838, o Instituto tinha como projeto a produção de uma historia nacional, e como meta “o delineamento de um perfil para a ‘Nação brasileira’, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das Nações[1]. Neste esforço, o Estado e a elite intelectual se relacionam intimamente[2], tendo no bojo deste projeto político centralizador, um Estado iluminado, esclarecido e civilizador[3]. Lembremos-nos de D. Pedro II, o monarca esclarecido, como exemplo.
    P orém, era aparente a idéia que através deste novo projeto, o Brasil buscaria um modelo a ser seguido. A recém formada nação brasileira deveria guiar-se pelos mais altos padrões civilizatórios do mundo ocidental e, mais importante ainda, servir de guia para as novas nações nascentes. O centro que forneceria estes paradigmas seria a velha Europa, terra que inspirava os mais grandiosos sonhos para a elite brasileira, elite esta sonhava com a modernidade (quando esta se ‘encaixava’ em seus projetos) e os bons costumes do Velho Continente.
    Como tão amplamente analisado por Norbert Elias [4], o conceito de civilização foi sendo desenvolvido ao longo de centenas de anos, num processo de longa duração, e teve como função demonstrar que a sociedade ocidente era superior a oriental, constituindo-se esta noção como uma visão de si mesma[5]. Percebe-se como esta noção vai ganhar uma conotação diferente com a Revolução Francesa, pois agora, o processo civilizador vai ser considerado como algo concluído nos países mais desenvolvidos economicamente (pelo menos nas classes alta e media), que agora teriam a missão de levar esta civilização a paises menos desenvolvidos[6], ou seja, a estes territórios considerados inferiores, levariam o mais alto padrão civilizador já alcançado. Neste momento, começa-se a idéia de tentar ver o desenvolvimento da humanidade através de estágios, na qual existiriam os povos superiores e os povos inferiores.
    Durante o próprio século XIX, as novas teorias positivistas dariam o suporte científico a esta visão, o evolucionismo de Spencer e o darwinismo social, procuravam comprovar que as sociedades se encontram em diferentes estágios evolutivos, podendo ser um mais ou menos avançado, criando assim a dicotomia bárbaro/civilizado, na qual o homem branco constituir-se-ia como o ser mais avançado, estando no topo da pirâmide racial como o homem civilizado.
Estas novas idéias européias encontrariam grande aceitação entre a elite intelectual brasileira - esta sendo também em sua grande maioria a elite econômica - e explicariam o atraso brasileiro em relação ao mundo desenvolvido. Ora, estas idéias teriam que ser pré-selecionadas e adaptadas ao contexto nacional, as exigências da elite local, até porque, alem das diferenças espaciais, temos também diferenças temporais, uma grande defasagem entre o surgimento destas idéias e a chegada delas ao Brasil[7].
    A elite pensante do Brasil teria que conciliar estas idéias principalmente com dois elementos totalmente contrários a estas: o escravismo e a grande miscigenação no território brasileiro. O primeiro se constituiria como símbolo de um Estado atrasado e anti-moderno, e o segundo como elemento de degradação da sociedade, elemento de degeneração da nação, a miscigenação era o pior pesadelo de qualquer sociedade, como podemos ver, por exemplo, nos relatos dos viajantes estrangeiros Luiz Agassiz e Richard Francis Burton que estiveram no Brasil nos anos de 1860[8].
    Logo percebemos que este Brasil qual almejava se tornar um centro difusor da civilização, que se via como herdeiro do projeto civilizador dos portugueses[9], seria extremamente excludente com elementos considerados degeneradores do processo civilizador, como os negros e os índios, no âmbito interno, e as republicas recém independentes da América Latina no âmbito externo.
No tocante ao escravismo, cada vez mais é atribuído a este o motivo do atraso brasileiro e, como solução a uma abolição da escravatura iminente, mostra-se como grande solução à carência de mão-de-obra livre, a reintegração do indígena (este mais valorizado que o negro) [10] . Mas, no debate - e aí reside mais um paradoxo criado pela importação de idéias estrangeiras- entre o uso da mão-de-obra indígena, representando esta o elemento nacional, e o uso da mão-de-obra branca, imigrante, a escolha evidentemente pendeu para o lado desta ultima.
    A solução de suprir a carência de mão-de-obra livre estimulando a imigração européia viria de encontro com a crença da elite na superioridade da raça branca, em suma, com esta medida, alem de dar solução a falta de mão-de-obra livre, se introduziria na sociedade maior numero de pessoas portadoras da civilidade, maior numero de elemento branco significaria um ‘salto’ para o processo civilizador brasileiro, única medida possível para concluir este projeto, tendo em vista que apenas o branco era portador de tal superioridade. Temos aí a política tão conhecida (e um pouco posterior), do branqueamento, ou seja, usando-se da miscigenação - não se problematizando suas implicações negativas segundo o modelo europeu[11]- como instrumento, chegaríamos ao tipo ideal de ‘gente’ civilizada, o homem branco. “A nação […] deve, portanto, surgir como o desdobramento, nos trópicos, de uma civilização branca e européia” [12], foi este o projeto que deveria tornar o Brasil um modelo, uma ‘civilização dos trópicos’.
[1] Manoel Luis Salgado GUIMARÃES, Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional, p. 6.

[2] Idem p.10.

[3] Ibidem, p.11.

[4] Norbert ELIAS, O Processo Civilizador, passim.

[5] Idem.

[6] Ibidem.

[7] Renato ORTIZ, Cultura brasileira e identidade nacional, passim.

[8] Márcia Regina Capelari NAXARA, Cientificismo e sensibilidade romântica.

[9] Manoel Luis Salgado GUIMARÃES, Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional, p. 6.

[10] Idem, Ibidem, p. 24.

[11] Lílian Moritz SCHWARCZ, O Espetáculo das Raças, São Paulo, p18.

[12] Manoel Luis Salgado GUIMARÃES, Op. Cit. P.8.

terça-feira, 20 de março de 2007

O País da Cocanha - O reflexo da utopia medieval nos tempos modernos.

Por Jessé A. Chahad e Thiago Mano Affonso

    O professor Jerome Baschet em entrevista ao jornal A Folha de São Paulo [1], com ressalvas comentou sobre a “atualidade” da Idade Média, fazendo um paralelo entre a satanização do presidente George Bush e a “caça as bruxas” praticada pela Igreja nos séculos XVI e XVII, e nos mostrando que não há grandes dificuldades se quisermos pensar que somos também medievais, ou ainda que a presença de certos tipos de fenômenos pode nos mostrar o quanto se deve importância ao estudo deste período.
    O Professor também afirmou que a conquista da América foi de certa forma uma expansão do feudalismo, o que nos levaria a alargar cronologicamente o conceito de Idade Média, o levando até o século XVIII. Aqui procuraremos obviamente com mais humildade procurar apenas possíveis reflexos do mundo medieval no moderno, sempre lembrando que o homem de hoje já foi medieval, no sentido do uso comum que se faz deste termo.


[1] Jerome BASCHET, América Medieval; entrevista ao Caderno MAIS, Folha de SP, 17/set/2006.



A inimiga: a fome

    Sabemos através de várias fontes que a fome era uma dificuldade enfrentada sempre, quase que de forma cíclica pela população[1], e a natureza era muitas vezes severa sendo uma dificuldade a ser superada pelo homem para garantir a sua sobrevivência[2] e a de seus familiares. O clima temperado, frio, as chuvas fortes eram responsáveis pela pouca incidência de alimentos e consequentemente pelo enfraquecimento sistemático mesmo no sentido biológico da raça humana, sendo normal em escavações o alto numero de restos mortais de pessoas com estaturas franzinas e com deficiência de cálcio, uma característica que durante algum tempo foi quase que um estigma acoplado ao da fome: a subnutrição.
    A onda de fome de 1315 alcança um numero de mortos que apesar das divergências em relação a sua exatidão, a historiografia concorda que foram números altos, maiores que a de outras ondas de fome anteriores[3]e marca uma ruptura em um processo de crescimento demográfico que havia lhe antecedido. Em suma, nesse período de breve crescimento demográfico, não cresceu paralelamente a produção de alimentos, e nem o avanço tecnológico necessário para isso[4], o que poderia explicar o surto de fome, que sempre reforça a idéia de se ter uma esperança relacionada a um futuro melhor, em um país imaginário, ou ainda no paraíso propriamente dito, visto que uma vida de sacrifícios era recompensada teoricamente com um lugar no céu cristão.

    Sendo assim, já de início podemos estabelecer um anacronismo, que será motivo de óbvia polêmica de fizermos um paralelo com os dias de hoje, encontraremos um reflexo do mundo medieval que mesmo que ao acaso nos chama a atenção se pensarmos em algumas comunidades africanas ou mesmo brasileiras que sofrem com a fome a inanição, a subnutrição e atravessam o século construindo características que se tornam intrínsecas, como os homens-gabirus do nordeste.

A necessidade: a utopia

    Segundo Sérgio Buarque de Holanda, as utopias, em qualquer momento da humanidade, agem como um fator progressista realmente eficiente. As utopias tiveram papel fundamental no período das navegações portuguesas. O maior medo dos marinheiros eram os monstros marinhos e as sereias que retratavam os riscos do mar traiçoeiro, porem a gana e a ganância de desvendar os novos caminhos e a esperança de encontrar terras abençoadas com abundancia e prosperidade foram maiores que os temores dos navegadores.
    O mito do país da Cocanha provavelmente derivou de tradições muito anteriores a tradição cristã ocidental, e por sua vez serviu de embasamento para varias outras lendas mais atuais que figuram no folclore ocidental. Ao analisar bem, podemos perceber que o 3º mundo vê os EUA como uma espécie de Cocanha, onde a prosperidade é quase inevitável e a liberdade é total. Por sua vez o governo tenta impor sua “utopia” para todo o 3º mundo, trocando a promessa de uma “democracia” pela legitimidade de seu projeto colonizador e explorador. O mesmo argumento foi utilizado na conquista das Américas, onde o colonizador trocava a engenhosidade e eficiência das armas e ferramentas européias e a graça de louvar o “verdadeiro” Deus pela exploração total da prosperidade dos povos nativos.

    Os mitos “Edênicos”, como são chamados os locais paradisíacos idealizados pelo homem (seja a Cocanha, o reino se Salomão, o próprio mito judaico do Éden, o Eldorado ou qualquer outro) são uma fantasia completamente embutida no nosso imaginário atual. Quem não sonha passar as férias em um resort ou um cruzeiro onde o cliente é servido todo o tempo e tem seus desejos realizados em cenários paradisíacos? Tudo tem seu preço.
    O que nos parece é que os mitos Edênicos foram criados para antagonizar a eterna dificuldade humana de conviver tanto com o ambiente onde vive quanto com a sociedade na qual está inserido. O grande erro da humanidade foi idealizar a Cocanha em algum lugar longínquo, e não em sua própria casa. A Cocanha, no fundo, representa cada desejo egoísta de cada homem que com ela sonha não um paraíso de igualdade e prosperidade para todos. O próprio mito do Eldorado não passa de uma releitura capitalista do mito da Cocanha, onde o que abunda não são comida e diversão, e sim dinheiro e jóias.
    Utilizando essa linha de pensamento vemos o poder que os mitos e utopias tinham e tem até hoje tanto para promover revoluções quanto para manter a “paz social”. É importante lembrar que historicamente a humanidade se organiza de maneira desigual e, a partir do inicio do capitalismo e das sociedades de mercado, ela só prospera em alguns países em detrimento de outros. Enquanto alguns desejarem tudo, não haverá como prover o necessário para todos. Porem, como dito no início, nós dependemos de nossas utopias.

O advento: o Maniqueísmo

    Talvez a maior herança que a idade media deixou para os tempos modernos foi o maniqueísmo. Tanto o Deus judaico (Javé) quanto os diversos panteões pagão mostram uma dualidade entre o “bem” e o “mal” muito parecidas com a dualidade humana, que possui uma parte boa e uma má, uma piedosa e a outra cruel.
    Durante a idade media a igreja católica promoveu uma verdadeira cruzada para implantar o maniqueísmo na cabeça das pessoas. Por isso foi criado pela igreja um verdadeiro “panteão maligno” que se referia a Satanás e seu exercito de demônios que tentavam a todo instante corromper, macular e finalmente destruir toda a obra de Deus na terra. A figura de Deus foi divida em Duas, e ao Diabo em questão foram atribuídos grandes poderes, o maior deles era o de corromper o ser humano. Com esse argumento a igreja católica perseguiu tudo e todos que eram avessos aos seus dogmas alegando “pacto com o diabo”.
    Esse maniqueísmo católico se tornou base para a maioria dos mitos medievais. Afinal de contas, se havia um inferno tão poderoso e ao alcance de todos, também tinha que existir algum paraíso tangível na terra. Algum lugar no mundo onde o homem poderia fugir das tentações demoníacas e se despir de todos os preconceitos e obrigações impostas pela sociedade medieval.

Creio que Deus e todos seus santos
Abençoaram-na e sagraram-na mais
Que qualquer outra região.
O nome do país é Cocanha;
Lá, quem mais dorme mais ganha.

As pessoas lá não são vis,
São pelo contrario, virtuosas e corteses.
Seis semanas tem lá o mês,

Quatro páscoas têm o ano,
E quatro festas de São João.
Há no ano quatro vindimas,
Feriado e Domingo todo dia.

Quatro todos os Santos, quatro natais,
Quatro candelárias anuais,
Quatro carnavais,
E quaresma a cada quatro anos,

O país é tão rico
Que bolsas cheias de moedas

Estão jogadas pelo chão;
Morabintos e besantes
Estão por toda parte, inúteis:
Lá ninguém compra nem vende.

As mulheres dali, tão belas,
Maduras e jovens,
Cada qual pega a que lhe convém,
Sem descontentar ninguém

Cada um satisfaz seu prazer
Como quer e por lazer;
Elas não serão por isso censuradas,
Serão mesmo muito mais honradas.[5]

    
    O ideário medieval criado através da mistura das culturas pagãs européias com os valores impostos pela igreja católica foi a verdadeira base das ideologias atuais. O que seria do ser humano sem as disputas maniqueístas entre judeus, católicos e muçulmanos. Como fazer uma guerra sem convencer ambos os lados de que estão lutando contra o mal? Como sobreviver num mundo tão penoso sem ter a perspectiva de encontrar um lugar justo e prospero para se viver no final? Para que lutar por uma sociedade mais justa e fraterna se os planos demoníacos estão muito além disso? Para que combater algo que não pode ser visto nem derrotado?
    Em tempos de miséria e perdição, os mitos ganham uma força extraordinária, levando em seu bojo todas as esperanças das classes desfavorecidas. Porem, como os mitos são em sua essência ilusórios, eles se desfaz como fumaça, deixando toda uma classe órfã de esperanças. Ainda hoje os mitos, de diferentes formas, são utilizados para conter ou provocar tensões sociais. Muitas vezes são utilizados como compensações ou recompensas pela luta empreendida. Como um objetivo que nunca será alcançado.
    Na verdade, não há diferenças concretas entre o homem moderno e o homem medieval, na verdade somos quase o mesmo homem, com a mesma crueldade, o mesmo egoísmo e a mesma ingenuidade. A única diferença é que o homem medieval não tinha como comprovar a existência ou inexistência de um reino perdido nos limites do mundo onde há fartura e igualdade só esperando a chegada de quem os encontrar. Nós homens modernos já sabemos que esse reino não existe, mas continuamos crendo nele mesmo assim.


A Cocanha e o Novo Mundo

    O País da Cocanha, lugar utópico festivo, onde a comida era abundante e o trabalho não era necessário, onde existiam rios de leite e de vinho, queijos e pães eram obtidos sem dificuldade era não apenas uma utopia strictu sensu, mas um sonho que às vezes era perseguido como real pelos europeus.
Com a descoberta do novo mundo, criou-se uma possibilidade de reprodução do paraíso na Terra, sonho perseguido pelos cristãos, recém saídos da Idade Média e que agora poderiam enfim encontrar a Cocanha, a terra abundante de alimentos, festas, orgias que agora poderia lhe pertencer.
Em referência a esse assunto, temos o clássico de Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, que se baseava em relatos coevos que procuravam justificar a necessidade de um novo éden, e posteriormente com o fracasso inicial da luta portuguesa contra o continente selvagem, a edenização da América portuguesa dá lugar à satanização, e de Terra de Santa Cruz a Brasil, era então o lugar infernal. [6].Ao encontrar o paraíso, o português nos demonstra o quanto estava à procura dele, pois as noticias de uma terra inóspita, farta em frutos e animais selvagens poderia bem ser a representação do País da Cocanha sendo finalmente realizado concretamente.

    Porém, não são esses assuntos que irão nos chamar a atenção, mas sim para o reflexo da Cocanha medieval ainda em período mais tardio, o século XIX.
Em artigo publicado, a Professora Roselys Izabel Corrêa dos Santos [7], nos informa que no período em que se deram as imigrações de italianos para o Brasil a partir do decreto de o Decreto n° 5.663 de 17 de junho de 1874, firmado entre o Governo Imperial Brasileiro e o Senhor Joaquim Caetano Pinto Júnior, que objetivava incrementar a política imigratória para o Brasil, se inseria em um contexto de luta social onde acusavam os trabalhadores de estar em busca da Cocanha, em busca de uma ilusão.
    Através do estudo de correspondências entre padres ela nos mostra o quanto o imaginário medieval estava sólido na consciência do homem moderno, tanto daqueles que buscavam imigrar em busca de uma terra de oportunidades, quanto daqueles que alertavam sobre o potencial utópico de tal empreitada.
Nos dias de hoje, seria de se supor que tais lendas já estivessem sido esquecidas ou mesmo substituídas por novas mitologias ou utopias produzidas pela sociedade industrial de consumo de bens materiais. Porém, para confirmar que isso não aconteceu, basta notarmos a presença marcante do universo arturiano, das fabulas de Camelot, de Avalon e todos os seus derivados que fomentam uma cultura de adoradores de filmes, livros, produtos em geral que remetem ao período em que tais lendas foram criadas.
    Sendo assim, muitos podem ser os reflexos da Idade Média presente no homem moderno, sendo um assunto de muita demanda e pouco interesse por parte dos historiadores que tem verdadeira ojeriza à relação cause-efeito, ou se preferirem, àqueles que acreditam que o presente em nada deve ao passado, e que as sociedades se reformulam a ponto de não conservar nenhum traço das civilizações ancestrais.         A esses fica o lamento e a lembrança de que a divisão cronológica é arbitrária, as vezes necessária, mas não tem o poder de dissociar as épocas recortadas umas das outras, constituindo assim uma espécie tempo linear, irreversível do qual apenas nos cabe observar suas mudanças e analisá-las de acordo com a necessidade do estudo da História.


[1] Hilário FRANCO JUNIOR, A utopia da abundancia: A Cocanha, p.26.

[2] Georges DUBY, Guerreiros e camponeses. Primórdios do crescimento econômico europeu séc.VII a XII.,p.17.

[3] Henri PIRENNE, Historia econômica e social da Idade Média, p.200.

[4] Gerald A.J.HODGETT, Historia Social e Econômica da Idade Média, p125.

[5] Trechos do Fabilau Francês.

[6] Laura de MELLO e SOUZA, Deus e o Diabo na Terra de Santa Cruz.

[7] Roselys Izabel CORREA DOS SANTOS, O País da Cocanha.Emigração Italiana e Imaginário.

domingo, 25 de fevereiro de 2007

História da Revolução Mexicana - Construção da Imagem pelas Fotografias

Por Jessé A. Chahad

Não iremos aqui tomar partido na questão inevitável sobre o caráter artístico das fotografias, pois aqui tentaremos resolver de maneira astuciosa esse debate, reservando-se o direito de acreditar que, não necessariamente deveremos tratar a fotografia através da dicotomia foto versus obra de arte, preferimos aceitar que além do caráter obviamente informacional histórico e construtivo das fotos, está intrínseco um valor artístico e estético a ser valorizado em um outro momento. Portanto, faz se desnecessária essa “competição”, visto que os dois aspectos podem caminhar juntos, ora se sobrepondo ou se complementando, existindo como duas faces de uma mesma moeda. Os conceitos que aqui serão adotados para a fotografia, fazem parte do pensamento dos autores a serem citados na bibliografia, fundamentais para a produção do texto.
A fotografia enquanto representação do real, muitas vezes assume caráter de documentação oficial, como no caso da Revolução Mexicana. Esse fato apenas reforça a tese de que a fotografia pode ser utilizada para a construção de um papel interpretativo da realidade e ainda mais: o seu caráter realista, proveniente da relação entre o momento real e o momento retratado, aliado ao caráter de oficialização acaba quase por determinar que contra as fotografias não existam argumentos possíveis de dubiedade.
É neste momento que devemos ser cautelosos e recorrermos aos documentos fotográficos como fontes passíveis de algumas diferentes interpretações, além de ressaltar que toda fotografia enquanto produto cultural é trabalho de um fotógrafo, o qual também está inserido em um contexto particular e serve a um propósito ora pessoal, ora pré-determinado por alguma ideologia, ou motivação profissional.Weinstein & Booth são citados por Boris Kossoy em seu livro Fotografia e História, e aqui retomamos sua premissa para este trabaho: “perceber na imagem o que esta nas entrelinhas, assim como o fazemos em relação aos textos”, “precisamos aprender a esmiuçar as fotografias criticamente, interrogativamente e especulativamente(...).[1]
A partir deste viés, tentaremos demonstrar que a produção das imagens que iremos analisar viria a satisfazer uma pré-disposição a que se legitimava toda a luta revolucionária, e que mesmo com seus períodos de ascensão e queda de poder, a fotografia esteve presente, tentando se manter isenta, através dos Casasola, porém auxiliando a ambos os lados a criar os mitos que iriam transpor os muros cronológicos dos acontecimentos e ecoariam hoje no imaginário da população mexicana.

Sobre a Revolução
A Revolução Mexicana pode ser considerada a primeira a se desenvolver diretamente no contexto das contradições internas do Imperialismo que contou com a decisiva participação das massas trabalhadoras[2], tanto camponesas quanto operárias, unindo o sul rural e o norte semi-industrializado sob a mesma luta. A revolução tem sua cronologia marcada pode se dizer em três fases, a primeira, iniciando-se em 1910 com a derrubada do ditador que iria para o seu sétimo mandato, Porfírio Diaz, e a tentativa de fracassada do levante do líder do partido anti-reeleccionista Francisco Maderos, marca o que se convenciona chamar do inicio da fase política da revolução, a revolução maderista. Após cinco meses de batalhas, Diaz renuncia e nomeia um substituto que viria a convocar novas eleições. Em outubro de 1911, Maderos é eleito com 53% dos votos, agora pelo Partido Progressista Constitucional.
Após duas tentativas de golpes fracassados, os remanescentes do porfiriato chegaram ao poder através do Comandante das tropas federais, Victoriano Huerta, que traindo o país e a pátria, assassinou o presidente Maderos e seu vice, e assumiu o poder, no episodio que ficou conhecido como la decena trágica.( 9 a 18 de fevereiro de 1913)
O governo de Huerta inauguraria uma nova fase revolucionaria que contaria de certa forma com o apoio internacional, dos países que não reconheceriam a oficialidade da tomada de poder. As tropas Zapatistas continuaram a luta, ao lado de Villa e Obregón, e mais uma nova força representada pelo Governador Venustiano Carranza, aliado as forças políticas do estado de Sonora. A partir de 1914, inicia-se a fase mais problemática do processo revolucionário, com a fragmentação das forças antes conjuntas e a radicalidade das facções camponesas que se opunham aos constitucionalistas.
Liderados pela Divisão do Norte, um exército de mais de trinta mil pessoas entre camponeses, mineradores, boiadeiros, ferroviários, bandidos e desocupados era liderado pelo líder popular Pancho Villa. Ao sul, dez mil guerrilheiros todos camponeses exigindo a devolução das terras usurpadas pelos grandes fazendeiros do açúcar. Os conflitos se arrastariam com vitórias e derrotas para todos, levando o Estado Mexicano a exaurir suas economias, e paralisar o crescimento e desenvolvimento do país.
A convocação para a eleição de uma Assembléia Constituinte em 1917 decide dar um rumo à política nacional, e logo em seguida Carranza é eleito Presidente e retoma certo ar de retorno do México do crescimento de sua economia, até nova investida da oposição, dessa vez liderada por Álvares Obregón. A briga pelo poder causou uma onda de violência que durou de 1918 a 1920, e terminou com a posse de Obregón. A partir daí, a revolução seria institucionalizada e o Norte viria a dominar a cena durante um longo período, o que faz com a periodização sobre a revolução mexicana seja motivo de discórdia na historiografia. [3]

Geração Casasola
Augustin Victor Casasola, nasceu em julho de 1874, aos vinte anos de idade já trabalhava como repórter e fotógrafo. Em 1912 ele funda uma agência de fotógrafos, a qual contava com o slogan: “Tengo o hago la foto que usted necesite”. A agência atendia a revistas, jornais, e ao público em geral. Afora Victor, trabalhava na agência também os seus irmãos, Miguel e Ismael. Este era o início de uma família que viria a atravessar as gerações servindo ao oficio da fotografia e da História do México.
Alem de fotógrafo, Augustin Victor era acima de tudo um colecionador apaixonado, sendo este um dos fatores mais problemáticos no tocante à identificação das fotografias e ao ano de produção das mesmas. Existem duvidas em relação à autoria de algumas obras, pois a agência também contava com nomes como o de Francisco Ramirez e Rafael López Ortega. O que sabemos ao certo é que havia uma obsessão de Augustin de formar um arquivo fotográfico a serviço da História do México. Após sua morte prematura em 1936, a família reuniu durante décadas um volume impressionante de imagens. Este belo arquivo que foi inaugurado em 1976, e conta com cerca de 600 mil peças, o chamado Arquivo Casasola está sob a guarda da Fototeca de Pachuca, vinculada ao Instituto Nacional de Antropologia e História do Estado Mexicano, e é considerado por alguns, o acervo fotográfico mais rico para se entender a história e a sociedade da primeira metade do século XX.
Pode parecer pretensioso, mas não seria der todo exagerado dizer que Augustin Victor participou dos primórdios do que conhecemos hoje como foto-jornalismo, devido à presença dos fotógrafos do “clã” diretamente nos eventos decisivos da Revolução, tanto nos momentos gloriosos, quanto no cotidiano de guerrilha, se é que se podemos falar nesses termos, os Casasola arriscaram a vida e se viram obrigados ora a registrar os triunfos dos federalistas no poder e, mais tarde, o relativo sucesso das camadas rebeldes.
A relação prévia de Casasola com a imprensa que se desenvolvia e se modernizava no inicio do século XX, pode ter ajudado na produção de tamanho numero de imagens. A imprensa começava a adotar um caráter capitalista, ao redor de todo o mundo e no México essa tendência não se deu de maneira isolada. As classes mais baixas poderiam ter acesso agora aos periódicos, que tinham sua reprodução em serie cada vez mais com um custo reduzido.
Em 1914, a forte perseguição federal à imprensa fecha os jornais “El Tiempo” e “El Imparcial” e leva Miguel Casasola a abandonar suas atividades profissionais para se juntar à luta. Ele se une às tropas do General Ordoñes, um seguidor de Álvaro Obregón, líder do Exército Constitucionalista.
Podemos acreditar que de fato os Casasola participaram em diversos momentos da revolução, e algumas imagens do cotidiano da guerrilha podem ter surgido neste contexto, (fig.1), porém, para uma maior precisão, seria necessário um estudo mais dedicado sobre o assunto, além de uma visita ao Arquivo Casasola, visto que também a bibliografia disponível em nosso país sobre esse assunto é muito escassa. Nesta imagem, podemos deduzir tratar-se das fileiras do Sul mais rural, menos militarizadas que as do Norte, diferença territorial marcante no México em todos os sentidos de desenvolvimento. As vestimentas podem denunciar a origem, como por exemplo, os chapéus de camponeses, de abas muito largas para proteger do forte sol.
Porém, o Professor Carlos Alberto Sampaio Barbosa, ao estudar mais profundamente o livro fotográfico lança a possibilidade de que as cenas de guerra passariam por uma mudança na sua forma de representação. As batalhas teriam um acréscimo de carga dramática ao serem retratadas mais de perto, e às vezes as cenas precisariam ser “montadas” para que pudessem permitir tal aproximação e dramaticidade. Apesar da dúvida, fica a certeza de que a partir deste momento, as guerras e batalhas passariam a ser retratadas de uma maneira nova, e com o advento próximo da imprensa, as noticias ganhariam uma dinâmica mais concentrada no apelo emocional e menos na função informativa.
Após a vitória da revolução, os Casasola passaram a ocupar cargos públicos; durante os governos de Obregón (1920-1924) e Calles, (1924 a 1928), Augustin é nomeado “Chefe fotográfico” e também cuida da direção de espetáculos. [4] Esse período foi muito importante para a família, pois foi em 1920 que Augustin Victor foi convidado pelo estado a fotografar o “progresso” no México, um vinculo que duraria até 1935 e que faria com que o fotógrafo ostentasse a alcunha de “o fotógrafo da revolução”. Em 1921, já havia material suficiente para que os Casasola publicassem o Álbum Histórico Gráfico, uma narrativa dos principais acontecimentos da Revolução.
Outro fato importante que devemos ressaltar foi a ruptura dos padrões “objetivos” da fotografia. [5] Tipos humanos que antes eram retratados apenas como “curiosidades nacionais”, agora ocupavam a cena principal, tamanha era a sua importância e evidencia no quadro nacional. A realidade da guerra se sobrepôs aos velhos hábitos do registro visual. Cenas de pobreza e miséria criavam uma atmosfera social, que antes só era sentida pelos próprios protagonistas e agora chegavam por meio de publicações em periódicos.

Construção da Imagem da Revolução
Para entender como as fotografias podem ajudar na construção de um imaginário acerca de um assunto, procuraremos através de analise de algumas peças identificar elementos em comum com a bibliografia conhecida sobre a revolução, chamando a atenção para os detalhes enquadrados em cada momento registrado. Para Augustin, no foto-jornalismo, o valor da fotografia consiste na capacidade.
Em foto do arquivo Casasola (fig. 2), tomada no norte agrário do México por volta de 1910, podemos ver uma cena de cotidiano camponês onde é impossível não percebermos a imagem da pobreza, da tristeza da foto, alem do contraste e da fisionomia, tanto da criança, quanto da idosa nos transmitem um ar de pena. O chão de terra traz um ar de precariedade, de falta de recursos, de simplicidade. Fica quase óbvio o significado maior da foto que alem dessa pobreza, mostra a presença da criança e a idosa, tipos que habitavam as cidades em sua maioria, visto que os homens e jovens que já podiam pegar em armas já tinham se juntado para engrossar as fileiras da revolução.
Podemos fazer um paralelo desta imagem com uma passagem da obra do escritor mexicano Juan Rulfo, Chão em chamas, onde os contos narrados têm a Revolução como seu pano de fundo. A imagem ilustra a paisagem de Luvina, cidade fictícia descrita por Rulfo, onde a tristeza impera, a falta de esperança é presente. Diz a narrativa: “Porque em Luvina só moram os velhos muito velhos e os que ainda não nasceram, como se diz (...) E mulheres sem forças, quase travadas de tão magras”. (p.310). A pobreza de Luvina é refletida no imaginário da Revolução, e acaba for fixar a imagem da miséria e da carência, urgente de mudanças.
Nas figuras 3 e 4 ,datadas do mesmo período, fica evidente o que foi citado anteriormente, de que todos aqueles que já tivessem idade ou força suficiente para empenhar uma arma se viam inclinados a defender seu território e exigir a devolução das terras usurpadas junto aos camponeses, tanto do lado dos Zapatistas ao Sul, quando do exercito forte de Villa ao Norte.
Fica também clara a violência da imagem, por se tratar claramente de crianças carregando armas, uma delas leva uma pistola no coldre, a munição cruzando peito e a espingarda empunhada, o que nos mostra além da demonstração de bravura e coragem do povo mexicano, a necessidade de que todos participassem da luta, da forma que pudessem. A figura ficou tradicionalmente conhecida como Adelita, e foi freqüente sua presença nas batalhas. Nos dias de hoje, quase cem anos após esses acontecimentos é normal vermos crianças empunhando armas, tanto nas favelas cariocas quanto nas divisas da faixa de Gaza, porém esse absurdo, com o qual não deveríamos ter nos acostumado, certamente chocou a sociedade da época, e foi uma maneira inclusive de dizer que as mulheres também tiveram sua participação de forma efetiva no processo revolucionário de maneira radical.
Nesta obra a ser analisada (fig. 5), está uma das uma das mais belas fotos de toda a coleção, também de Augustin Victor, e datada indefinidamente dentro do período de 1910-1912, podemos ver a figura heróica de Francisco Villa, o Pancho liderando a temida Divisão do Norte, invicta no campo de batalha até então, era o exército mais bem preparado, em termos de militarização e disponibilidade de equipamentos. A presença dos cavalos e carroças por si só já potencializa o ataque das tropas, devido a sua velocidade e poder de avanço maciço, massacrante. A imagem de Villa, imponente, a frente da cavalaria cria definitivamente o mito heróico que trespassou as gerações ate hoje ecoa não só na construção do imaginário da revolução, mas mesmo na construção da identidade da sociedade mexicana.
Na próxima foto (fig. 6), vemos o exercito Zapatista e logo de cara já percebemos a diferença em relação à cavalaria de Villa. A formação dispersa e os trajes civis, de camponeses, fazem com que o exercito passasse despercebido quando preciso. Era uso comum em situações de vigília, eles enterrarem as armas e voltarem a sua atividade original, de camponeses, para depois fazerem a tocaia às tropas federais. O conhecimento do território e a presença de indígenas garantiam às tropas Zapatistas um caráter sorrateiro no deslocamento e letal com suas táticas de guerrilha.
Para os que olham a foto rapidamente, ou às vezes se a imagem está em más condições, alguns podem chegar a pensar que se trata de um exército muito numeroso, porém se prestarmos atenção de maneira simples, iremos perceber que o exército está presente apenas na frente da imagem, estando ao fundo um imenso milharal. Pode parecer até uma anedota, mas essa mimese não era ocasional. A camuflagem do homem do campo, encoberto pelo seu habitat natural, aliada ao conhecimento do território citado acima conferiam mais uma habilidade que viria complementar as tropas rústicas de Villa, quando da união dos dois exércitos para a tomada da Cidade do México em seis de Dezembro de 1914.
O próprio Zapata, não foi muito retratado no período inicial, sendo a maioria de suas imagens sempre posteriores a 1914. Avesso à exibição, sempre sério, jamais sorrindo, com o olhar apaixonado e perdido que se relata, conquistava o coração das moças da época, Zapata aparece também como símbolo do poder, da vitória camponesa, marcando a transferência de poder que se deu durante a revolução, levando consigo a mudança na liderança nacional, tratando de solidificar uma imagem a ser martirizada logo após sua morte. (fig.7 e 8 )
A figura 9, um momento – chave da revolução: 6 de dezembro de 1914, dois dias depois do pacto estabelecido entre as tropas federais e as revolucionárias, os exércitos Zapatistas e Villista juntos adentram a Cidade do México. No centro da foto, identificamos os dois líderes juntos, e os grupos aparecem totalmente misturados, prova de sua cooperação. Camponeses caracterizados e militares fardados simbolizam a união dos grupos mais significativos da Revolução Mexicana. Impressiona também a quantidade de pessoas que engrossavam as fileiras da luta e que agora chegavam a vitória.
A próxima, uma das fotos mais famosas da Revolução, (fig.10) que tem um simbolismo extremamente evidente, sintetiza o auge da revolução camponesa onde assistimos Villa sentado à cadeira presidencial, em pose de despojo, ritual que seria seguido por Zapata logo em seguida. O riso no rosto de Villa e sisudez de Zapata mostram o quanto abrangente foi a revolução, alem de denotar uma característica do caráter de cada personagem que ficaria marcada de forma nítida em cada fotografia. A presença de populares em um dos momentos de maior importância na História do México também nos traz a imagem da forte participação popular no processo. Podemos ver camponeses, junto a soldados ainda feridos, em igualdade a seus lideres, desfrutando com ironia para não dizer deboche o sucesso de sua vitória militar.
Com tudo isso que foi dito até agora, já não fica mais em segredo o que se conseguiu passar com exibição dessas imagens. Percebermos quanto foi fundamental esse registro fotográfico para a construção da imagem que se tem de Revolução Mexicana, com seus lideres idealizados e suas urgências de melhorias para a população pobre. As fotos retratam alem do heroísmo e astúcia de alguns de seus personagens, também a radicalidade do processo que contou com a participação de mulheres e crianças, além das fracas condições de desenvolvimento dos desertos do planalto mexicano.
Devemos lembrar que tudo isso vem somar ao que Octavio Paz nos lembra sobre a Revolução, quando ele nos diz que todo esse heroísmo, essa urgência pelos oprimidos vêm retomar toda uma temática que já havia se dado na luta pela independência do México frente à Espanha. A retomada desses valores antes empregados reforçava cada vez mais o imaginário da população e com certeza foi fator fundamental para o sucesso relativo do processo revolucionário.
Apesar de a fotografia não ser incontestável, mesmo com toda a sua proximidade da realidade, são evidentes as escolhas que foram feitas pelos Casasola para conseguir transmitir os sentimentos necessários de revolta, de indignação, a fim de justificar a necessidade de uma mudança radical. O resultado é bem sucedido e conhecido pelo mundo todo, e as fotos da revolução existem até hoje gravadas no imaginário da população e na riquíssima cultura mexicana.
A importância então da fotografia é maior muitas vezes do que outros meios artísticos, como a literatura ou a pintura, devido a sua camuflagem de verossimilhança que não esta escondida em metáforas ou estilos, e sim exposta como ferida aberta, a fim de mostrar de maneira mais real possível, fazendo quase que imperceptível a construção por detrás da obra, que é tomada como retrato fiel da realidade. Um instrumento de tamanho poder, concluímos, é essencial para aqueles que desejam justificar os meios de se chegar a um objetivo e conseguir a legalidade perante as massas populares, e a opinião estrangeira.


Bibliografia

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DUBOIS, Philippe; O ato fotográfico e outros ensaios, Campinas, Papirus, 1994.

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HOBSBAWM, Eric J., A era dos Impérios, 1875-1914, São Paulo, Paz e Terra, 1988.

HOBSBAWM, Eric J., A era dos Extremos, O breve século XX-1914-1991, São Paulo, Cia. das Letras, 1995.

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MACHADO, Arlindo, A ilusão especular; introdução à fotografia. São Paulo, Brasiliense/Funarte, 1984.
[1] Boris KOSSOY, Fotografia e Historia p.79.
[2] Eric HOBSBAWM, Rumo à revolução, In: A era dos impérios, p.396.
[3] Ana Maria Martinez CORREA, A Revolução Mexicana, 1910-1917
[4] Carlos A. S. BARBOSA, A fotografia a serviço de Clio: uma interpretação da historia visual da Revolução Mexicana, pp.35.

[5] Ibid, pp.36

quinta-feira, 2 de março de 2006

A Inquisição e o Brasil

Por Jessé A. Chahad

O primeiro visitador do Santo Oficio chega à Bahia em junho de 1591, o desembargador Heitor Furtado de Mendonça chegara com a impressão causada pelas leituras dos relatos feitos por Nóbrega sobre o Brasil, onde “não se guarda um só mandamento de Deus e muito menos os da Igreja”. A notícia da presença do Santo Oficio deixou a população em pânico.O Brasil seria uma terra sem leis tanto religiosas, quanto administrativas.

A falta de fé e de obediência certamente representava para o poder papal uma derrota no campo da conscientização e da formação de uma sociedade que deveria ser adepta aos preceitos católicos o que facilitaria a centralização do poder estatal, que estava aliado à Igreja, na reconstrução do modelo de estado português na colônia.Sonia Siqueira afirma que a Igreja tinha interesse em “integrar o Brasil no mundo cristão” e descobrir “onde se calcava a fé de nossos moradores”.

A população colonial era em sua maioria analfabeta, desregrada, sofria com a falta de mulheres brancas e realmente não se tocava às sublimidades dos ensinamentos da Igreja, diversas vezes ridicularizados e raramente seguidos. Podemos citar como exemplo rápido a ocasião em que mesmo antes das visitas, em 1546, Pero do Campo Tourinho, donatário da capitania de Porto Seguro foi denunciado à Inquisição de Lisboa simplesmente por ter dito que em suas terras quem mandava era ele, ele seria o “papa”em sua propriedade, e não deveriam ser respeitados os domingos e dias santos, pois não se poderia perder dia de trabalho.Era comum aos colonos amaldiçoarem santos e maldizerem os sacramentos. Aos jesuítas muitas vezes era necessário afastar os nativos dos colonos, para que esses não assimilassem seus hábitos e vice-versa, dada à visão demoníaca que inicialmente a Igreja fez da poligamia e do antropofagismo dos índios, e do proveito que tiravam os colonos dos nativos, que sofriam com a falta de mulheres brancas.

As práticas desregradas na colônia chegaram a ser tidas como doutrina, o “Ultra equinoxialem non peccatur”, a idéia de que não existia pecado ao sul do equador, onde colonos e degredados viviam às fornicações, sodomia, adultérios e incestos.Esses comportamentos fizeram alguns acreditar que o próprio nome Brasil estaria associado a essa idéia, pois a figura da brasa quente como o inferno, vermelha como a madeira, produto que daria o nome ao país teria substituído o nome inicialmente adotado de “Terra de Santa Cruz”.

Esse tipo de comportamento pode também ser fruto de uma administração mal organizada, ineficiente, a confusão de funções e competências, a complexidade dos órgãos, o excesso de burocracia faziam com que o poder estatal fosse praticamente nulo, não imprimindo à sociedade nenhum tipo de senso moral coletivo.A falência do estado permitia a ingerência da Igreja na formação de uma conduta moral rígida, e a Inquisição entra em cena praticamente quando a situação da moral, ou da falta dela já era consolidada na colônia e a imagem demoníaca da vida cotidiana estava vinculada à idéia de um mundo novo a ser civilizado.

A expansão do poder papal sobre uma colônia em desenvolvimento, e a possibilidade de sua inserção no sistema católico é apontado como um dos fatores que levaram a Inquisição a estender seu braço sobre os domínios tropicais. Isso representaria a reprodução do estado português na colônia, fato que deveria ocorrer em todas as instancias.Para garantir o poder de seu controle de repressão, o Estado e a Igreja dispunham entre outros artifícios dos sermões, onde eram transmitidas as idéias de céu e inferno, que aterrorizava os colonos com a possibilidade da danação eterna
Porém, Anita Novinsky nos mostra outra visão referente ao assunto em detalhado estudo a partir da leitura dos processos que a Inquisição realizou no Brasil nos séc. XVI e XVII. Segundo dados recolhidos pela autora, o principal crime de que foram acusados os brasileiros e portugueses residentes no Brasil pela Inquisição, teria sido o da prática do judaísmo, (dos 1.067 prisioneiros relatados no livro, 46,13% dos homens e 89,92% das mulheres foram acusados de judaísmo o que nos obriga a acrescentar uma idéia à teoria de que o Brasil era uma terra sem leis e de certa forma carente de regras de moralização, era também terra de negócios lucrativos, e com a presença de cristãos novos oriundos da própria península
Analisando os dados sobre as pessoas que foram denunciadas, presas, julgadas e sentenciadas podemos ver uma predominância de mercadores e agricultores (27,76%) sobre as outras ocupações liberais e artesãos (12,86%, o que pode demonstrar uma certa pré - disposição à procura de possíveis hereges nas áreas em que os judeus oriundos da Espanha, expulsos em 1492 pelos reis católicos, estavam mais presentes.Esses boatos de prosperidade colonial também ecoavam na metrópole e isso pode ter aguçado a ganância dos reis Filipes que sabiam da quantidade de comerciantes e senhores de engenhos bem estabelecidos na região, muitos de origem judaica.Os cristãos novos que aqui estavam tinham ligações comerciais com os paises baixos, e os holandeses que estavam em guerra com a Espanha incomodavam a Coroa, que assumia o trono português em 1580.Chegou a ser cogitado em 1621 que se estabelecesse um tribunal da Inquisição no Brasil, assim como havia em Lima (1570), e no México (1571), mas o Brasil ficou livre não só do seu próprio tribunal, mas inclusive do auto da fé, espetáculo de execução e julgamento popular muito apreciado e repetido nos domínios do Santo Oficio.
> Muitas práticas modernas conhecidas na agricultura da cana, por exemplo, não eram aplicadas, o que demonstrava apenas o interesse exploratório comercial da colonização e conseqüentemente seu atraso imposto pela metrópole.Apesar da “brandura” vista na Inquisição no Brasil por alguns historiadores, apenas a sua presença e o interesse despertado pela colônia tem um significado simbólico muito forte e deve ser considerado no contexto da arbitrariedade da Igreja e da incompetência do Estado.