‘’Assim escrevia Leon Trotski em 1923: ‘’O fato de até agora não termos ainda dominado o cinema prova o quanto somos desastrados e incultos, para não dizer idiotas. O Cinema é um instrumento de propaganda. ‘’Apoderar-se do cinema’’, ‘’Controlá-lo’’, Dominá-lo’’; Essas são expressões encontradas constantemente em Trotski, Lenin e Lunatcharski’’ (FERRO, Marc. 1977 p. 27)
O cinema, inventado pelos irmãos Lumière em 1895, rapidamente evoluiu de uma curiosidade técnica para uma das mais poderosas ferramentas de comunicação em massa já criadas. Mais do que um meio de entretenimento, o cinema se consolidou como um espaço de construção de imaginários, promoção de ideologias e manipulação de consciências. Desde o seu início, essa forma de arte se mostrou apta a atender interesses políticos e econômicos, servindo como um instrumento de poder para influenciar e moldar mentalidades. Este ensaio visa explorar o papel do cinema na construção de narrativas políticas e ideológicas, examinando sua relação com a propaganda, o reforço das desigualdades sociais e a manutenção de um sistema capitalista que vende ilusões, gerando insatisfações e depressão nas populações.
Marc Ferro, em sua obra Cinema e História, destaca que o cinema "não apenas reflete a realidade, mas também a constrói, projetando visões de mundo que são assimiladas e naturalizadas pelo público"¹. Este conceito nos leva a refletir sobre o papel fundamental desempenhado pelo cinema na manipulação das massas. A partir do século XX, regimes autoritários e democráticos reconheceram o potencial do cinema para propagar ideologias e construir discursos que legitimam suas práticas e políticas. O caso clássico de manipulação cinematográfica é o filme O Triunfo da Vontade (1935), de Leni Riefenstahl, que se tornou um marco na propaganda nazista. Este filme foi cuidadosamente estruturado para glorificar Adolf Hitler e o movimento nazista, utilizando técnicas de montagem, enquadramento e sonoplastia para criar um imaginário coletivo de unidade e força nacional.
No entanto, a instrumentalização do cinema não se limitou aos regimes totalitários. Nos Estados Unidos, durante o período da Guerra Fria, o cinema de Hollywood também atuou como um instrumento ideológico na luta contra o comunismo. De acordo com o historiador Siegfried Kracauer, o cinema de Hollywood, em momentos de crise social, busca apresentar ao público narrativas que reforçam o status quo, oferecendo saídas escapistas que mascaram as tensões sociais². Durante a Guerra Fria, filmes que apresentavam o comunismo como uma ameaça constante e reforçavam os valores do capitalismo americano tornaram-se comuns, servindo não apenas para entreter, mas para moldar consciências em um contexto de tensão geopolítica.
O cinema, desde suas origens, esteve intrinsecamente ligado à lógica do mercado capitalista, cuja prioridade é o lucro e a manutenção da hegemonia das classes dominantes. Pierre Bourdieu, em A Distinção: Crítica Social do Julgamento, discute como a produção cultural é instrumentalizada para reforçar as divisões de classe e perpetuar um sistema de poder hierárquico³. No caso do cinema, a indústria cinematográfica, ao buscar atender as demandas de consumo, frequentemente cria narrativas que legitimam as desigualdades sociais ao apresentar histórias que exaltam o individualismo, a meritocracia e o consumo como vias de sucesso e felicidade.
A produção dos grandes estúdios, centrada em filmes blockbusters, frequentemente segue fórmulas narrativas e estéticas que evitam questionamentos profundos e oferecem uma visão simplista da realidade. Essa lógica é intencional, pois atende aos interesses das grandes corporações que controlam a indústria cinematográfica. De acordo com Noam Chomsky, em Manufacturing Consent, o cinema e outros meios de comunicação de massa são utilizados para criar consenso e naturalizar desigualdades, promovendo uma “ordem simbólica” que legitima a dominação das elites⁴. Dessa forma, o cinema se transforma em um mecanismo de reprodução das estruturas de poder vigentes, promovendo o conformismo social e inibindo a mobilização crítica das massas.
Além de sua função política e ideológica, o cinema também desempenha um papel importante na construção de ilusões que mascaram as condições materiais da sociedade. Jean Baudrillard, em Simulacros e Simulação, argumenta que a sociedade contemporânea vive imersa em um hiper-real, no qual a distinção entre realidade e representação se torna cada vez mais tênue⁵. O cinema, enquanto meio de comunicação visual, contribui significativamente para a construção desse hiper-real, ao apresentar ao público versões idealizadas de realidades inatingíveis. Esse fenômeno é particularmente evidente no cinema de Hollywood, que constrói e vende um “sonho americano” baseado no sucesso individual, na riqueza e na conquista de bens materiais.
Essa criação de um mundo ilusório não é inofensiva. Diversos estudos sociológicos e psicológicos têm apontado os impactos negativos do consumo de conteúdos midiáticos que promovem padrões inalcançáveis de beleza, sucesso e felicidade⁶. Esse processo leva a sentimentos de inadequação e fracasso, contribuindo para o aumento dos índices de depressão e ansiedade, especialmente entre jovens que são bombardeados com imagens de um mundo perfeito e inatingível. Nesse sentido, o cinema pode ser visto como um meio que não apenas reforça as desigualdades materiais, mas também cria e agrava desigualdades emocionais e psicológicas.
O controle do cinema como meio de comunicação de massas é, portanto, uma questão central para a manutenção de estruturas de poder. Marc Ferro argumenta que “a história através do cinema é a história de uma visão do mundo que foi difundida, manipulada e, às vezes, dominada pelas imagens”¹. Ao analisar o cinema sob essa perspectiva crítica, é possível perceber como ele se configura como uma ferramenta de propaganda política, um reforço das desigualdades sociais e um criador de ilusões que alienam o espectador. Cabe à sociedade questionar as narrativas apresentadas pelas indústrias cinematográficas e promover um consumo crítico que permita uma maior conscientização das manipulações ideológicas e das desigualdades perpetuadas por meio dessa forma de arte.
O uso do cinema para fins propagandísticos foi amplamente reconhecido já durante a Primeira Guerra Mundial. Naquele momento, os governos perceberam que o cinema poderia ir além do entretenimento, servindo como um meio eficaz de unificar o imaginário coletivo em tempos de crise. Marc Ferro destaca que a Primeira Guerra Mundial marcou o início do uso estratégico do cinema por Estados para moldar percepções populares e justificar ações militares¹. Em um contexto em que a mobilização nacional era crucial, o cinema desempenhou o papel de criar uma imagem positiva do esforço de guerra e desumanizar os inimigos, apresentando-os como bárbaros ou perigosos para a civilização.
Nos filmes produzidos durante a Primeira Guerra Mundial, as narrativas reforçavam o heroísmo dos soldados nacionais e a brutalidade dos inimigos. De acordo com a historiadora Emma Hanna, o cinema britânico da época, com filmes como The Battle of the Somme (1916), buscava não apenas registrar os acontecimentos da guerra, mas criar um sentido de pertencimento nacional, sensibilizando a população para o esforço e sacrifício necessários em tempos de conflito². Essa prática estabeleceu um precedente para o uso do cinema como arma de propaganda em guerras futuras.
A Segunda Guerra Mundial e o Cinema de Propaganda
A Segunda Guerra Mundial representou o auge do cinema de propaganda, com ambos os lados do conflito utilizando extensivamente essa ferramenta para mobilizar suas populações e demonizar o inimigo. Nos Estados Unidos, o governo investiu pesadamente em filmes de propaganda através do Office of War Information (OWI), que controlava a produção e distribuição de filmes voltados para fortalecer o moral das tropas e dos cidadãos, bem como para justificar as ações militares americanas. Nessa época, filmes como Why We Fight (1942-1945), dirigido por Frank Capra, desempenharam um papel fundamental na narrativa oficial de que a guerra era uma luta pela liberdade e pela civilização ocidental contra o fascismo³.
Enquanto isso, na Alemanha nazista, o cinema se tornou um dos principais instrumentos de propaganda sob o comando de Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda de Adolf Hitler. Filmes como O Judeu Süss (1940) e O Eterno Judeu (1940) foram utilizados para promover o antissemitismo e justificar políticas de extermínio, apresentando os judeus como uma ameaça existencial à pureza da nação alemã. De acordo com o historiador Siegfried Kracauer, essa estratégia de propaganda cinematográfica nazista foi central para o processo de desumanização do inimigo, reforçando estereótipos racistas e preparando a população para aceitar a violência de Estado contra grupos minoritários⁴.
A Guerra Fria e o Cinema de Hollywood
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, o cinema continuou a desempenhar um papel crucial na construção de narrativas de guerra, agora voltadas para a luta ideológica entre o capitalismo ocidental e o comunismo soviético. O cinema de Hollywood, alinhado aos interesses do governo dos Estados Unidos, produziu uma série de filmes que visavam criar um sentimento de paranoia em relação à ameaça comunista. Filmes como Invasion of the Body Snatchers (1956) e Red Dawn (1984) se valeram de metáforas para representar o medo da infiltração comunista na sociedade americana, contribuindo para consolidar uma visão maniqueísta do mundo⁵.
Nesse período, a propaganda de guerra através do cinema não se limitava a filmes abertamente ideológicos, mas permeava produções de entretenimento, em uma estratégia conhecida como “soft power”. Segundo o cientista político Joseph Nye, o uso do cinema como ferramenta de influência indireta foi essencial para o fortalecimento da hegemonia americana, pois consolidava a visão de um mundo dividido entre o “bem” ocidental e o “mal” soviético⁶. Desse modo, o cinema de Hollywood atuou como um braço cultural do governo dos Estados Unidos, utilizando a linguagem cinematográfica para justificar a política externa americana e legitimar a intervenção em conflitos globais.
O Impacto do Cinema na Construção de Inimigos e Heróis
A propaganda de guerra, ao longo da história, se valeu do cinema para criar inimigos estereotipados e heróis idealizados, construindo uma visão polarizada do mundo. Essa polarização facilita a mobilização das massas ao simplificar o complexo contexto dos conflitos e desumanizar o inimigo, tornando-o uma ameaça que deve ser erradicada. Esse processo é evidente tanto na produção de filmes durante a Segunda Guerra Mundial quanto em tempos de guerra contemporânea, como o período pós-11 de setembro.
Segundo Edward Said, em Orientalismo, a criação de narrativas polarizadoras no cinema é central para a construção de identidades nacionais, pois reforça uma dicotomia entre “nós” e “eles”, legitimando ações militares em nome da civilização e da segurança⁷. Filmes de guerra frequentemente desumanizam o outro, transformando o inimigo em um estereótipo cruel ou traiçoeiro, enquanto apresentam os soldados nacionais como heróis sacrificiais que lutam por uma causa justa. Essa construção narrativa não é neutra, pois direciona as emoções e percepções do público em direção à aceitação do esforço de guerra.
Ao longo da história, o cinema se consolidou como uma ferramenta essencial na propaganda de guerra, utilizada para mobilizar populações, justificar ações militares e consolidar narrativas ideológicas. Desde a Primeira Guerra Mundial até a Guerra Fria, o cinema desempenhou um papel fundamental na construção de imaginários coletivos que legitimam conflitos, reforçam identidades nacionais e desumanizam o inimigo. Como observou Marc Ferro, o cinema “não apenas reflete, mas constrói e condiciona a realidade que percebemos”¹, sendo, portanto, um instrumento estratégico para aqueles que buscam controlar a narrativa e manipular a opinião pública em tempos de guerra.
Referências
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do Cinema Alemão. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.
CHOMSKY, Noam. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media. New York: Pantheon Books, 1988.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D'Água, 1991.
TWENGE, Jean M. iGen: Why Today's Super-Connected Kids Are Growing Up Less Rebellious, More Tolerant, Less Happy—and Completely Unprepared for Adulthood. New York: Atria Books, 2017.
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