quinta-feira, 1 de agosto de 2024

A massificação da burrice na era da Idiocracia

    
O filme "Idiocracy" (2006), dirigido por Mike Judge, apresenta uma sátira social e uma visão distópica de um futuro onde a humanidade, devido à estagnação intelectual e cultural, regrediu a um estado de extrema ignorância e consumismo desenfreado. A narrativa do filme, embora caricata, reflete preocupações contemporâneas sobre o declínio intelectual e moral da sociedade, bem como os impactos ambientais e sociais decorrentes do consumismo excessivo e da degradação do ambiente.

    O lixo e o plástico são temas centrais quando discutimos os impactos ambientais do consumismo contemporâneo. Como apontam os sociólogos Ulrich Beck e Anthony Giddens, a "sociedade de risco" em que vivemos caracteriza-se pela produção contínua de riscos ambientais e tecnológicos, muitos dos quais são invisíveis e difusos, mas de grande impacto. Beck (1992) argumenta que a modernidade produziu riscos globais que não podem ser facilmente controlados, e o problema do plástico é um exemplo evidente dessa questão.

    A produção de plástico tem crescido exponencialmente desde meados do século XX e, segundo estudos, a maior parte desse plástico não é reciclada e acaba em aterros, incineradores ou no oceano, causando danos ambientais massivos. A crise do lixo plástico não é apenas uma questão de gestão de resíduos, mas também reflete um padrão de consumo baseado na obsolescência programada e no desperdício. O aumento da produção de lixo está intimamente ligado ao comportamento de consumo incentivado por uma economia de mercado que promove o descartável e o supérfluo como normais e desejáveis (Leonard, 2010).

    A   narrativa de "Idiocracy" também destaca uma queda generalizada na inteligência da população. Embora essa ideia seja exagerada para fins cômicos, ela ressoa com preocupações levantadas por alguns estudiosos sobre uma possível estagnação ou até declínio no desenvolvimento intelectual. O sociólogo Richard Herrnstein e o cientista político Charles Murray argumentaram em "The Bell Curve" (1994) que fatores socioeconômicos podem estar influenciando o desenvolvimento cognitivo da população. Embora suas conclusões sejam amplamente debatidas e criticadas por sua abordagem determinista e pelas implicações políticas, a discussão sobre os efeitos do ambiente socioeconômico no desenvolvimento cognitivo continua relevante.

    Além disso, o trabalho do psicólogo James Flynn, conhecido como "efeito Flynn", documentou um aumento nos escores de QI ao longo do século XX, mas Flynn também alertou para a possibilidade de que fatores como a degradação ambiental, a educação deficiente e a má nutrição possam, eventualmente, reverter essa tendência (Flynn, 2007). A conexão entre ambiente, educação e inteligência é complexa, e a sociedade moderna, ao falhar em lidar adequadamente com essas questões, pode estar colocando em risco o desenvolvimento cognitivo das futuras gerações.

    Outra preocupação central que emerge do contexto atual, e que pode ser relacionada ao filme "Idiocracy", é o aumento da violência e a frequência de conflitos globais. De acordo com o sociólogo Norbert Elias, em "O Processo Civilizador" (1939), a civilização moderna deveria levar a uma diminuição da violência devido ao monopólio estatal da violência e à internalização das normas sociais. Contudo, nos últimos anos, tem-se observado uma tendência oposta, com o aumento de conflitos internos e externos, guerras civis, e atos de terrorismo.

    O antropólogo e sociólogo Michel Wieviorka (2009) sugere que a globalização e as crescentes desigualdades sociais estão contribuindo para o aumento da violência, tanto em escala local quanto global. A violência, neste contexto, pode ser vista como uma resposta à exclusão social e ao fracasso dos sistemas políticos e econômicos em garantir justiça social e equidade.

    O filme "Idiocracy" de Mike Judge serve como uma crítica mordaz à sociedade contemporânea, alertando para as consequências de um consumismo desenfreado, da degradação ambiental e da estagnação intelectual. Embora a visão distópica do filme seja exagerada, ela levanta questões pertinentes sobre o futuro da humanidade diante das crises ambientais, intelectuais e sociais. A necessidade de repensar o modelo de desenvolvimento e de consumo é urgente, assim como a importância de investir em educação e políticas públicas que promovam a sustentabilidade e a justiça social.

    O capitalismo contemporâneo, particularmente na sua forma neoliberal, tem sido criticado por diversos estudiosos por promover um tipo de cultura que valoriza o consumo desenfreado, a superficialidade e a satisfação imediata em detrimento de valores mais profundos e duradouros. Em seu livro A Era do Vazio (1983), o sociólogo Gilles Lipovetsky argumenta que a sociedade pós-moderna é marcada pelo hedonismo e pelo individualismo, onde o consumo é visto como uma forma de autoafirmação e identidade. Essa mentalidade, segundo Lipovetsky, enfraquece o pensamento crítico e favorece uma visão de mundo superficial.

    Nos Estados Unidos, esse fenômeno é exacerbado por uma cultura de massa que privilegia o entretenimento e o espetáculo em detrimento da educação e do conhecimento. O teórico cultural Neil Postman, em seu livro Amusing Ourselves to Death (1985), alerta que a transformação do discurso público em um espetáculo mediático contribui para a desinformação e para a degradação do debate público. Ele argumenta que a televisão, e posteriormente a internet e as redes sociais, moldam uma sociedade em que o entretenimento é priorizado em detrimento de conteúdos intelectualmente desafiadores.

    Nos Estados Unidos, o sistema educacional é frequentemente criticado por falhar em preparar os estudantes para o pensamento crítico e para a cidadania ativa. O filósofo e crítico social Noam Chomsky tem sido um dos maiores críticos da maneira como o sistema educacional e os meios de comunicação nos Estados Unidos são estruturados para manter a população passiva e desinformada. Em seu livro Manufacturing Consent (1988), Chomsky e Edward Herman descrevem como os meios de comunicação de massa, controlados por grandes corporações, funcionam como um aparato de propaganda que molda as percepções e opiniões da população de acordo com os interesses das elites econômicas e políticas.

    O sistema educacional, nesse contexto, é moldado para criar trabalhadores dóceis e consumidores acríticos, em vez de cidadãos informados e engajados. O foco na padronização e nos testes, em detrimento da criatividade e do pensamento crítico, pode ser visto como um reflexo dos valores do capitalismo, que prioriza a eficiência e a conformidade ao invés da inovação e da autonomia intelectual.

    Os Estados Unidos, como epicentro da cultura global, têm exportado não apenas produtos, mas também valores e padrões culturais através de seus meios de comunicação, entretenimento e, de forma mais ampla, através da globalização. O sociólogo Pierre Bourdieu, em Sobre a Televisão (1998), destaca que a televisão americana e os produtos culturais derivados dela tendem a homogeneizar as culturas ao redor do mundo, promovendo uma forma de entretenimento que privilegia o espetáculo e o sensacionalismo. Essa forma de globalização cultural pode ser vista como um vetor de "burrificação" global, onde a cultura de consumo americana, com suas ênfases em superficialidade e entretenimento vazio, suprime tradições intelectuais e culturais locais.

    A associação entre o capitalismo neoliberal e a "burrificação" das pessoas também pode ser entendida a partir da crítica à desigualdade social promovida por esse sistema. Thomas Piketty, em seu livro O Capital no Século XXI (2013), demonstra como o capitalismo contemporâneo tem exacerbado as desigualdades sociais, concentrando a riqueza em uma pequena elite enquanto o restante da população enfrenta estagnação econômica e precarização das condições de vida. Essa desigualdade, por sua vez, limita o acesso a uma educação de qualidade, a recursos culturais e à informação crítica, contribuindo para a perpetuação de uma massa de pessoas desinformadas e facilmente manipuláveis.

    O filósofo Slavoj Žižek também critica o capitalismo neoliberal por criar uma falsa sensação de liberdade e escolha, quando, na realidade, as opções disponíveis são cuidadosamente moldadas para perpetuar um sistema de dominação. Em Living in the End Times (2010), Žižek argumenta que o capitalismo oferece uma liberdade superficial enquanto restringe o pensamento crítico e a capacidade de ação das pessoas, contribuindo para um estado de conformidade e ignorância generalizada.

    O filme "Idiocracy", quando analisado sob a ótica crítica, serve como uma metáfora poderosa para os efeitos do capitalismo e da cultura de consumo, particularmente no contexto dos Estados Unidos. A "burrificação" das pessoas, como apresentada no filme, é o resultado de um sistema que valoriza o lucro e o consumo acima do conhecimento e da educação. As consequências disso não são apenas a degradação intelectual, mas também a degradação ambiental, social e política. Em um mundo cada vez mais dominado por essas dinâmicas, é imperativo reavaliar os valores que norteiam nossas sociedades e buscar caminhos que promovam um desenvolvimento mais sustentável e uma cultura mais crítica e consciente.

Referências Bibliográficas:


Beck, Ulrich. Risk Society: Towards a New Modernity. Sage Publications, 1992.
Elias, Norbert. O Processo Civilizador. Jorge Zahar Editor, 1939.
Flynn, James R. What is Intelligence? Beyond the Flynn Effect. Cambridge University Press, 2007.
Herrnstein, Richard J., and Charles Murray. The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life. Free Press, 1994.
Leonard, Annie. The Story of Stuff: How Our Obsession with Stuff is Trashing the Planet, Our Communities, and Our Health—and a Vision for Change. Free Press, 2010.
Wieviorka, Michel. A Violência. Contexto, 200

Bourdieu, Pierre. Sobre a Televisão. Zahar, 1998.
Chomsky, Noam, and Edward S. Herman. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media. Pantheon Books, 1988.
Lipovetsky, Gilles. A Era do Vazio: Ensaios sobre o Individualismo Contemporâneo. Manole, 1983.
Piketty, Thomas. O Capital no Século XXI. Intrínseca, 2013.
Postman, Neil. Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business. Viking Penguin, 1985.
Žižek, Slavoj. Living in the End Times. Verso, 2010.

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