Mostrando postagens com marcador Império. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Império. Mostrar todas as postagens

sábado, 4 de setembro de 2021

História da Vida Privada no Brasil-Império, a corte e modernidade nacional.

                                                                Por Jessé A. Chahad

A coleção História da Vida Privada no Brasil, dirigida por Fernando Novais é dividida em quatro volumes e constitui uma das obras recentes mais importantes sobre História do Brasil, e representa um marco no mercado editorial brasileiro devido ao sucesso de vendas em um país que lê pouco e compra ainda menos. O enfoque na vida cotidiana faz um recorte da sociedade brasileira e procura através de documentos tidos como privados construírem o ambiente das relações sociais desde o descobrimento até meados do século XX.
A partir da leitura de testamentos, dados do recenseamento, correspondências, fotografias, entre outros documentos, os autores vão traçar dentro da cronologia tradicional, temas pertinentes ao cotidiano do Império, costumes e práticas comuns aos habitantes, além de curiosidades pontuais que fornecem detalhes fundamentais para o entendimento da História, que muitas vezes tem diminuída a sua importância por parte dos historiadores que tratam exclusivamente da História pelo seu viés econômico, ou ainda os que trabalham a História social de uma maneira tradicional, porém com certo conservadorismo que impede novas interpretações acerca da importância dos costumes como retrato e imagem de uma nação.
Esta resenha não pretende ser um resumo do livro, porém devido ao formato da coleção, o qual apresenta uma divisão em capítulos independentes dentro da obra, se considerou necessário produzir o texto de maneira abrangente, com o desafio de representar todo o volume, tendo uma unidade a partir da opção temática da coleção. A riqueza dos detalhes trazidos nos trabalhos demandaria um trabalho maior, e talvez sua utilização em excesso pudesse se limitar à repetição exaustiva de dados.
Na introdução, o historiador Luiz Felipe de Alencastro atenta para a importância de uma obra fundadora do estudo da vida privada no Brasil. Trata-se de Sobrados e Mucambos de Gilberto Freyre, publicado em 1936 e que trazia uma história a partir de diários, correspondências, noticias de jornal e estudos acadêmicos oitocentistas, e polemizava sobre diversas questões da historiografia, como por exemplo, a relação entre senhores e escravos.



Vida publica e privada
No primeiro capítulo do volume, o historiador Luiz Felipe de Alencastro irá tratar de forma geral as condições da vida privada no Império. Inicialmente a sociedade de privilégios será o tema em questão, visto que de certa forma essa condição é determinante para o entendimento de certos fatores, como por exemplo, o que leva as autoridades públicas a terem de dar o aval sobre a posse e gestão de uma propriedade privada muito presente: o escravo. Esse paradoxo iria atravessar os anos da gestão imperial, e o autor demonstra não acreditar que esse escravismo era herança colonial, ou seja, não representava um atraso. Era visto sim, como um projeto para o futuro, que pretendia incluir a escravidão nos quadros do Direito moderno, demonstrando a peculiaridade do tipo de modernidade que procurava se construir[1].
Alencastro irá afirmar que o Rio de Janeiro será local difusor de regras e costumes, por sua vez importados da Europa, seriam moldes para o padrão de comportamento que iria atravessar o país pelo século XIX. Nova contradição se apresenta a partir desse fato, pois as diferenças eram decisivas e por diversas vezes representavam entrave para a difusão do modelo europeu. Vestimentas, instrumentos musicais, e acessórios ditavam os usos e costumes e hierarquizavam a sociedade através da criação de um código de ética, ou melhor, uma etiqueta, que deveria ser seguida à risca - sinal de civilização. Os sapatos, por exemplo, eram peças do vestuário que serviam facilmente como diferenciadores entre classes, visto que apenas homens livres os possuíam, fato endossado por fotografias do período.
As diversas revoltas do período serão tratadas dentro do contexto cultural, e a derrocada do sistema escravista estaria ligada aos conflitos provocados pelos escravos do Oeste paulista no período posterior ao fim do tráfico internacional em 1850. A resistência dos próprios escravos colaborou para que novos tipos de mão de obra passassem a ser vistos como solução econômica para o senhorio[2].
O cotidiano das religiões e crenças foi estudado pelo historiador João José Reis, e nos trouxe um interessante ponto de vista sobre os costumes ligados a morte. A partir da análise de testamentos, Reis tentou demonstrar as preocupações que a morte representava e o imaginário das crenças pós mortem que deveriam garantir antes de tudo, um enterro digno, teria garantia quase de salvação[3]. A presença não só de pessoas próximas, mas se possível ilustres, ao lado de carpideiras em grande número eram de bom gosto e significavam que a pessoa era bem quista. As carpideiras eram profissionais do choro, sua presença demonstrava o caráter cênico e festivo dos rituais de enterro, claro se entender festa no sentido de congregação e comoção social.
Os costumes dos africanos, sabidamente presente em maioria no Império também tem seus próprios rituais de passagem, inclusive com homenagens públicas, de acordo com o prestígio do morto. Apesar de todo o preconceito vindo da sociedade dominante, os escravos não se viam inibidos a demonstrar suas crenças. Ao contrário, eram motivo de resistência e orgulho, além de significarem que a autonomia cultural dos africanos por si só já se constituía, dentro das suas limitações, uma sociedade privada.
O embate entre público e privado vem à tona quando se iniciam as tentativas de transferência dos enterros realizados dentro das igrejas, para locais mais afastados, a fim de se preservar a higiene - conceito fortificado com o liberalismo-e que atingiam as paróquias, que por sua vez, eram dependes de donativos provenientes de testamentos, e de enterros. A chamada reforma por que passariam as instituições religiosas provocaria mudanças, como aponta o autor, a partir de então, a distância entre vivos e mortos, representada pelos cemitérios públicos parece ter criado um esfriamento nas relações com o sagrado[4].Assim requisitava a racionalização proposta pelo modelo liberal, cada vez mais presente e importante para a formação do contexto que viria a se desenrolar.
Ao estudar a opulência na Bahia, a professora Kátia Mattoso irá provocar um deslocamento do foco tradicional que permeiam os estudos sobre o Império, muitas vezes limitados ao Rio de Janeiro. Porém, a influência fluminense se demonstra definitiva na sociedade rural baiana, que procurava se adaptar aos costumes difundidos pela corte. Os relatos de Vilhena sobre a Bahia são trazidos pela autora através de outras obras da historiografia que trataram do tema, assim ela procura construir uma imagem da opulência que difere de certos moldes tradicionais da História.
A opulência era ostentada, e às vezes a ostentação era o mais perto que um plebeu poderia chegar de tal atributo, e mesmo podendo ser fictícia, não deixava de ser elemento de diferenciação social ao passo em que na Europa, a nobreza a via como afirmação de seu poder[5].A distribuição de títulos de fidalguia fazia com que genealogias inteiras fossem criadas, a fim de que com sobrenome de prestígio, um cidadão comum pudesse se diferenciar dos demais e o conduzir a uma função pública, ou qualquer coisa que o aproximasse da aristocracia.
Segundo afirmação de Stuart Schwartz, “apesar da aspiração ao status de nobreza, os senhores de engenho constituíam se essencialmente em uma aristocracia de riqueza e poder, que desempenhou e assumiu muitos dos papeis tradicionais da nobreza portuguesa, mas nunca se tornou um Estado com bases hereditárias”, com essa afirmação Kátia Mattoso demonstra a linha que pretende seguir, ao considerar que a aristocracia baiana nunca viveu escondida atrás dos muros (grifo meu) e atentando para a mobilidade que poderia trazer a simples convivência entre os meios rural e urbano[6]. Sinal disso era a quantidade de dinheiro que circulava em forma de empréstimo, fato bem visto, se considerarmos a tendência de modernização e progresso que estava associada ao sentimento de solidariedade em detrimento do conceito antiquado de usura e da honestidade dos baianos, quase sempre pagadores de suas dívidas.
A autora vai retomar a questão do modelo escravista iniciada por Gilberto Freyre, quando trata da questão dos escravos e trabalhadores livres, estabelecendo entre esses dois personagens da sociedade uma relação de poder, além de comparar os dois estamentos. Para Mattoso, alguns escravos também gozavam de certas regalias, claro de acordo com a posição do senhor a que ele pertence: “o escravo de uma casa de ricos será quase sempre desdenhado pelo seu colega mal nutrido pertencente ao seu vizinho pobre” [7].Essa tese implica a discussão acerca dos diferentes modos de dominação dentro do próprio sistema escravista, mas sem qualquer “brandura” que pode ser erroneamente interpretada.
Muitos trabalhos já foram produzidos, inclusive por Ana Maria Mauad, sobre o papel das imagens na construção dos costumes e do imaginário na sociedade. Quase sempre remetemos ao olhar estrangeiro, que através dos seus viajantes contribuiu com relatos escritos e até fotográficos. Não podemos esquecer da especificidade que pode representar o ponto de vista desses viajantes, em sua maioria em busca do pitoresco e do extraordinário. Portanto devemos ver com algumas ressalvas certas afirmações acerca do assunto, como Mauad nos traz[8], pois a fotografia nos seduz a pensá-la com uma áurea de realismo extremamente significante, porém longe de teor incontestável.
Algumas exceções se apresentam como o fotógrafo Marc Ferrez que procurou retratar também o mundo trabalho, além de figuras ditas comuns ou de pouca importância, mas que são relatos do contraste entre a imagem de modernidade e progresso pretendida pelos governantes e o atraso representado pela miséria e trabalho escravo. Seus trabalhos atravessaram o tempo e são referência tanto no estudo da História do Brasil, quanto no debate sobre o uso de registro fotográfico como documento histórico e todo o problema relacionado à sua pretensa oficialidade.
Seria impossível não se utilizar de fontes iconográficas para a produção do texto, devido à sua notável presença no período e posteriormente sua importância como documento. Ana Maria Mauad vai utilizar imagens em busca de uma visão mais detalhada sobre o significado das representações e construções presentes no material. A fotografia, símbolo da modernidade foi muito utilizada por D Pedro II na construção da imagem que queria demonstrar. Ele mesmo obteve diversas fotografias, inicialmente através da daguerreotipia e mais tarde com o avanço das técnicas de reprodução se utilizou ainda mais em um processo publicitário sem precedentes nos trópicos. Contribuía para isso, a alta taxa de analfabetismo que contribuía para que a fotografia se tornasse uma linguagem mais acessível a todos.
A título de curiosidade, vale lembrar que na Campinas de 1833, o pintor Hercules Florence já havia conseguido desenvolver a fotografia através de técnica própria, fato ainda não tratado de maneira digna pela historiografia e objeto de estudo do historiador Boris Kossoy, especialista em imagens, em diversas de suas obras.
Mais uma vez os costumes importados se impõem, e estão presente nas imagens representadas pelo vestuário, e pelo caráter cênico demonstrado pela analise do cenário. Não só o imperador se preocupava em ser retratado ao lado de bustos de figuras de destaque ou globos geográficos procurando demonstrar sabedoria e cosmopolitismo. As famílias em geral procuravam se retratar com toda pompa exigida pela pequena ética dos costumes. Os escravos ditos domésticos eram por vezes enfeitados e demonstrados com certo orgulho por seus senhores. Porém a expressão nos rostos dos retratados não nos exige muito estudo para que nos dias de hoje possamos ter um sentimento de tristeza oriundo de um período extenso e cruel para os negros no Brasil.
O debate sobre o escravismo tem seqüência no trabalho de Robert W. Slenes que nos apresenta uma carta muito peculiar na qual um jovem dá alforria a sua própria mãe, insinuando a maneira peculiar que se davam as relações sociais no período. A partir de então, o autor irá narrar de maneira detalhada a saga da família Gurgel Mascarenhas, natural de Minas Gerais, mas empreendedores que apostaram em São Paulo. Dentro desse contexto, transparece o crescimento e o desenvolvimento agrícola da região Oeste. Essa família serve como exemplo para os moldes da época, em que o inevitável contato entre senhores e escravos começavam a produzir frutos, ou como no caso,serem incluídos em testamentos filhos antes rejeitados.
Robert Slenes irá contrapor os trabalhos das historiadoras Elizabeth Kuznesof e Hebe Mattos de Castro buscando nesses trabalhos elementos que formassem bases de comparação entre a mobilidade social nas províncias de São Paulo e Rio de Janeiro respectivamente. Nota-se que entre os agricultores o enriquecimento por meio do escravismo era mais freqüente no início de século, e declinou ao passo em que pequenos e médios senhores se encontravam em situação crítica[9].Mais uma vez, a presença de escravos em serviços domésticos convivendo dentro da casa senhorial é vista como fator de certa mobilidade, mesmo dentro do sistema severo qual estava inserido e para o autor, representa uma alteração no quadro da vida privada.
O tema da imigração é estudado no contexto das fazendas de café do oeste paulista, com o imigrante sendo introduzido de maneira gradual junto aos cativos, o que pode ter desencorajado uma massa maior de estrangeiros, assustados com as condições de trabalho e pouco beneficio. Ora, se os modos e costumes eram forjados na colônia e transpassavam o Atlântico, se mostrava necessária uma maior presença de europeus como força de trabalho, com a iminência do fim do escravismo. A chegada de colonos germânicos no o sul do Império, a vinda de portugueses em maior número que antes era freada no período joanino, eram incentivadas com políticas imigrantistas somente a partir de 1818. Terras públicas teriam sido o primeiro atrativo para convencer novos imigrantes a investirem seu próprio capital no país[10]. Nota se não estava se pensando inicialmente em substituição de mão de obra, e sim um sistema de loteamento que propiciasse novos pólos produtores. O quadro imaginado não correspondeu à realidade. A chegada numerosa de imigrantes pobres engrossava as camadas baixas e disputavam ainda trabalho com cativos, que agora trabalhavam em um regime de emprego agora semi – escravista. A situação tem melhoria a partir dos investimentos da corte em infra-estrutura, com a construção de estradas e vias férreas no fim da década de 1850.
Os números apresentados pelos autores merecem destaque, pois ilustram o fluxo migratório para o Brasil: entre 1550 e 1850 chegaram cerca de quatro milhões de africanos, enquanto de 1850 a 1950, 5 milhões entre europeus e asiáticos. Após a abolição, intensificaram se a presença de espanhóis e italianos. A transformação da sociedade era irreversível, e a abolição deu início a uma série de modificações legais e concedeu direitos aos cidadãos, ainda que com todos os problemas que sabemos interferirem de maneira direta quando se trata de uma mudança na ordem privada de um local.
Porém, obviamente notamos nos dias de hoje a herança negativa deste processo que exclui a maioria da população negra, que historicamente busca seu espaço na nova ordem. Lembrando que aos libertos, nada alem de uma falsa liberdade foi concedida, pois não tinham terras, nem condições ou reparos pelos anos de cativeiro. O estereótipo do escravo dava lugar ao do negro liberto, confirmando o preconceito que era reflexo da frustração de uma elite que perdera sua mais lucrativa forma de exploração.
Para simbolizar as transformações defendidas ao longo do trabalho, Evaldo Cabral de Mello irá ao último capitulo reforçar o que vimos anteriormente. Dialogando com Gilberto Freyre, o autor vai fundo na intimidade da ordem privada, e se dedica ao estudo de diários pessoais, uma freqüente prática principalmente entre a elite, chamados de “livros de assento”, “pequenos cadernos onde o chefe da família anotava os principais acontecimentos da história doméstica.”.
O “fim da casa grande” marca o turbulento processo de modernização forçada e inspirada no modelo europeu. O progresso, a republica, o futuro era inevitável e o Brasil procurava se adaptar a nova velocidade dos acontecimentos, a revolução cientifica, aos novos modelos políticos, porém com certo atraso criado pela própria ineficiência do Estado, em tentar impor costumes de caráter civilizatório com moldes próprios e interesses mais do que suspeitos.
A importância da História Privada no Brasil reside nos documentos legados pelas gerações que nos ajudam a entender melhor a sociedade, pois aproxima de maneira incontestável o objeto de estudo sob o prisma do cotidiano e procura mostrar de uma maneira mais prática a presença de fatores que são estudados na academia em forma de teoria pura, e muitas vezes se tornam trabalhos sólidos, porém frios e quase aritméticos.
De certa forma, não há uma tese única a ser defendida, há muito mais. Há um deslocamento do ponto de vista meramente econômico para uma intimidade quase desconhecida pela escola tradicional. A partir deste viés, é que vem à tona os debates da historiografia como sistema escravista, construção do Estado, Independência, etc. Também presente em todas as passagens está a inevitável influência de Gilberto Freyre, polemizado até hoje e às vezes mal interpretado, ele procurou demonstrar que apesar de todo o mal, podemos perceber algumas diferenças entre o nosso sistema escravista, e, por exemplo, o norte americano. Guardadas as questões que surgirão neste intenso processo de análise da complexa obra de Freyre, fica claro que ele se dedicou a inovar ao trazer para a academia o olhar sobre os costumes não só da aristocracia, mas também do insurgente povo brasileiro.

[1] Luis Felipe de ALENCASTRO, Vida privada e ordem privada no Império, in História da Vida Privada no Brasil, p.17.

[2] Idem, p.93.

[3] João José REIS, O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, in: História da vida privada no Brasil, p.104.

[4]Idem, p.141.
[5] Kátia M. de Queirós MATTOSO, A opulência na província da Bahia, in: A História da vida privada no Brasil, p.153.

[6] Idem, p.156.
[7] Idem, p.158.

[8] Ana Maria MAUAD, “Para o viajante, a impressão causada pelo olhar é a que fica, fornecendo o estatuto de verdade ao relato. O fato de ele ter estado presente, de ter sido a testemunha ocular de um evento, ou de um hábito cotidiano qualquer, garante a sua narrativa o teor incontestável”. In: Imagem e auto imagem no segundo reinado. In: A História da vida privada no Brasil, p.185.

[9] Robert W. SLENES. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: História da vida privada no Brasil, p.247.

[10] Luiz Felipe de ALENCASTRO, Maria Luiza RENAUX. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: História da vida privada no Brasil. P.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

As Barbas do Imperador

                                                                Por Jessé A. Chahad

Este estudo da pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz tem como cenário o Segundo Reinado, época de D. Pedro II, monarca cuja figura já nos é tão conhecida por meio de inúmeras biografias, porém aqui o que se busca são os caminhos de construção do mito de Estado que se formou, seja em esfera oficial na figura do “rei que já era rei antes de nascer”, do “monarca tropical” ou do sábio imperador erudito portador de longas barbas que deveriam realçar sua maturidade e sabedoria mesmo na juventude, como também no imaginário popular, onde D. Pedro II era uma espécie de catalizador de desejos populares que se refletiam nas inúmeras festas do império, oficiais ou não, onde o monarca era sempre figura destacada, fosse ele o personagem principal ou mais um rei entre tantos outros que habitavam o imaginário dos extratos populares naquele período.
Mesmo a representação mais oficial de “monarca tropical”, “Luís XIV dos trópicos”, também é permeada por um repertório muito próprio de símbolos, que a autora tenta desvendar, analisando temas a princípio díspares, como a ritualística calcada na mais profunda tradição européia (porém sempre vinculada ao elemento tropical); a associação de fundo romântico com o índio para um projeto de na nação; a insistência em apresentar uma imagem civilizada (como nas feiras e exposições universais do séc. XIX), porém mesmo neste último caso, por mais que se tentasse fugir do tema, o que sobressaia aos olhos estrangeiros era nossa face exótica, de paraíso edênico, da qual o próprio imperador fazia parte, haja visto que ele próprio sentava na frente dos estandes brasileiros nestas feiras, já à época tentando incorporar o aspecto de “monarca cidadão”, elemento também estudado no livro. Tudo isto tendo em vista ser o Brasil um dos últimos países escravistas do mundo na segunda metade do séc. XIX, o que reforçava ainda mais nosso caráter, no mínimo, exótico.

A idéia, nas palavras da própria autora, é “recuperar meios e processos pelos quais toma forma uma grande representação de D. Pedro II e do Império brasileiro”. Para isto é importante o exame da iconografia e desta representação oficial do imperador, onde o próprio tema das “barbas” do jovem D. Pedro e outros símbolos pensados pela elite do período são cruciais para se analisar seu impacto junto aos elementos populares, que são quem efetivamente “consumirá” esta imagem que irá tornar-se “mítica” e “sagrada”, tendo o apogeu de sua representação nas já citadas festas e, à parte as festas oficiais e outras trazidas pelo colonizador português, são as festas da população de origem africana que possuem o destaque neste contexto.
Apesar da associação oficial com o índio, teorizada em muito por alguns intelectuais do IHGB, bancados por D. Pedro, não podemos esquecer de forma alguma a contribuição dos africanos para a jovem nação que se formava e é por meio destas festas que esta população dialogará com o Império, influenciando e sendo influenciada por este. Podemos dizer que o próprio D. Pedro II e a monarquia compactuaram com esta cultura, que como diz Schwarcz, “ao mesmo tempo em que se europeizou com sua presença, tornou-se mestiça, negra e indígena no convívio”, tornando-se ele um “monarca com muitas coroas”, pois nestas festas o elemento imaginário de fundo monárquico estava sempre presente, fosse nas cavalhadas ou no mito messiânico do sebastianismo (estes de fundo português), fosse nas congadas, festas do Divino, batuques, etc., onde o monarca brasileiro dialogava constantemente com outras “realezas”, inclusive reis africanos eleitos no Brasil, nas congadas, por exemplo.
Mesmo na representação oficial permeada pelo romantismo indigenista, este movimento de influência e re-influência contínua se faz presente, pois se da mesma forma que na literatura e na pintura os índios nunca foram tão brancos, o monarca e a cultura brasileira tornavam-se cada vez mais tropicais, em movimento análogo ao das festas já citados acima. Inclusive, não podemos deixar de citar que apesar da popularidade que a monarquia sempre gozou no Brasil, a figura do imperador começa a perder esta popularidade a partir do momento em que D. Pedro II abandona esta representação de “monarca tropical” e vai aos poucos deixando de lado o caráter “sagrado” e “divino” de sua realeza para assumir a pecha de “monarca cidadão”, com seu livro sempre a mão e a pose de erudito, mecenas do progresso, que tentava passar principalmente ao olhar estrangeiro, que no entanto, sempre deu mais atenção ao nosso lado exótico e ambíguo.

Portanto, ao mesmo tempo em que o Império influenciou e foi influenciado pelas culturas nativas e africanas no campo popular (em que as festas seriam o outro lado do manual de etiqueta da corte), também o foi no campo oficial, ao mesmo tempo “embranquecendo” e europeizando o índio, mas também assumindo uma representação sempre envolta de muitas frutas, animais e outros temas tropicais como o próprio indígena. Por outro lado, ao perder a pompa que ajudava a ligar o imperador à realeza sagrada e mistificada das festas e procissões, começou-se a perder a monarquia no Brasil. Porém, à parte as “maquinações das elites”, como frisa Schwarcz, a monarquia sobreviveu no campo do imaginário popular, em que hábitos de pensamento e mentalidades anteriores à vinda da corte re-traduziram e atualizaram D. Pedro sempre como o eterno monarca tropical.

Utilizando como fontes uma vasta iconografia e dados biográficos sobre D. Pedro II, além de material de época, Lilia Schwarcz aproveita também como documento um tipo de relato interessantíssimo, que é o dos viajantes estrangeiros, principalmente no que concerne às festas, onde acreditamos que esta visão estrangeira seja importante como um todo para tentarmos decifrar algumas das ambigüidades que tanto faziam parte do Brasil, a parte o preconceito destes viajantes, que vindo aqui para pesquisar a fauna e a flora, defrontavam-se com estranhos fenômenos dos homens, na cabeça deles.
Além da população biologicamente mestiçada, estes homens encontravam aqui também uma mestiçagem de costumes e religião, o que, principalmente na mente protestante e racionalista de muitos deles, constituía-se em um absurdo. Porém, mesmo entre estes relatos levantados por Schwarcz, identificamos muitas diferenças entre os autores. Henry Koster e Robert Avé-Lallemant parecem ter gostado da mulher negra e mulata. Já os famosos naturalistas alemães Spix e Martius, apesar da série de análises negativas, se mostravam otimistas em relação ao futuro do Brasil. Carl Seidler, que chegou ao Brasil sem muitas pretensões científicas ou intelectuais, mostra-se por demais preconceituoso.
Os reverendos protestantes Kidder e Fletcher constrangiam-se com a escravidão e a falta de decoro nas cerimônias religiosas, tendo todos eles vivido nas mais diferentes partes do Brasil. À parte suas diferentes motivações, podemos dizer que o fascínio pela natureza, a aversão à escravidão e a indignação contra os rituais religiosos miscigenados são uma constante nas análises de todos. De qualquer maneira, apesar do ranço muitas vezes preconceituoso e da distância com que estes estrangeiros observam o Brasil, é inegável que nestes relatos a nação surge pela primeira vez negra e mestiçada em sua cultura, apesar das tentativas da elite em esconder o elemento negro. Provavelmente, e a autora aponta isto no texto, nasce aqui a representação de nossa cultura popular como sendo mestiça, composta de brancos, negros e índios.
Partindo para uma época diferente, final dos anos 80 do séc. XIX, as análises do alemão Carl von Koseritz são extremamente interessantes para embasar um argumento de decadência da monarquia em comparação com os escritos de Fletcher, por exemplo, já que ambos tiveram a oportunidade de comentar as aparições públicas do imperador. Diz Schwarcz: “Enquanto este último não se cansava de exaltar o luxo e a pompa do palácio e dos cortejos reais, Koseritz traça um quadro caricatural e decadente da corte e de D. Pedro II (...) a distância de trinta anos entre os textos revelava marcas profundas na monarquia”. Entre estas duas visões é bem embasada a transição do monarca sacro e tropical para o monarca cidadão.
Sobre esta nova representação, é importante destacar o empenho pessoal do próprio imperador, que assumia uma postura de cada vez mais tentar veicular uma imagem “civilizada” a seu imenso império rural e escravocrata, inclusive bancando novidades como a fotografia e o telefone entre nós, além do empenho do governo brasileiro em sempre portar-se bem nas já citadas exposições universais, mais um projeto que levava a marca pessoal de incentivo do monarca, porém o que mais ressaltava a olhos estrangeiros era mais uma vez nosso caráter de país com maravilhosa natureza e “bons selvagens”.
No que tange à construção de uma imagem “mítica” ou “sagrada” do imperador, a análise que faz a autora com base na tese de “corpo sagrado” e “corpo político” que toma emprestada de Ernest Kantorowicz é de extrema relevância, pois este “corpo do rei” simbolizava as duas instâncias que viemos tratando desde o início, ou seja, a criação política e institucional da realeza de um lado e a figura mítica, marca do imaginário popular, de outro.
Além de Kantorowicz, Schwarcz utiliza-se fartamente de estudos clássicos anteriores a respeito da monarquia brasileira para construir sua argumentação, como os de José Murilo de Carvalho, Sérgio Buarque de Holanda e José Felipe de Alencastro, entre outros, além de dialogar com outros trabalhos clássicos no campo da sociologia ligada ao estudo de realezas, mais acentuadamente neste caso Norbert Elias, bastante empregado por ela.
Para encerrar, lembramos do resgate que faz a autora desde a morte do imperador (sua famosa barba, que o acompanhou durante a maioria de suas representações, tornava-se mais branca ainda no leito fúnebre, realçando ainda mais este símbolo) e os caminhos que a memória e, por que não, seu “corpo sagrado” toma na primeira república até sua redenção oficial na era Vargas, inclusive com o traslado dos corpos do casal real para Petrópolis, que tornaria-se assim definitivamente a “cidade de Pedro”. Portanto, a par de todos os temas estudados e analisados por Schwarcz, só podemos realmente encerrar com a frase de Mendes Fradique, que abre o livro: “Só uma coisa não fez o grande monarca durante todo o seu feliz reinado: foi a barba”.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Fotografia e construção de imagens no Império Brasileiro.

Por Jessé A. Chahad

Apesar do debate sobre a invenção da fotografia, que é atribuída ao francês Louis Daguerre em janeiro de 1839, no Brasil temos a presença do pintor Hercules Florence que no Oeste paulista, na Campinas no ano de 1833 já havia conseguido desenvolver a fotografia através de técnica própria, objeto de estudo do historiador Boris Kossoy. Em 1839, ela chegava à corte, pelas mãos do Abade Louis Compte, recém chegado de uma de suas viagens pelo mundo e em um período de 40 anos se proliferou de maneira que o Rio de Janeiro fosse uma das capitais do mundo que apresentava um grande número de estúdios fotográficos, quase sempre de formação estrangeira. A própria família real dava muita importância às fotografias, devido ao grande número de fotos do período ainda existentes.
Inicialmente tida como artefato de luxo, pela própria escassez e dificuldade que representavam a daguerreotipia, as inovações representadas pela descoberta do processo conhecido como calotipia proporcionava a reprodução de diversas cópias a partir de um mesmo negativo em 1850. A partir de 1860, a aplicação de colódio úmido baixava consideravelmente o custo de produção da fotografia e popularizava o hábito[1] principalmente através dos carte de visite[2]. A alta taxa de analfabetismo do período forma uma camada da sociedade carente de informação visual, e com potencial para a prática insurgente da propaganda política e publicidade comercial, a imagem impressa alcança sua maioridade[3].
A fotografia como documento histórico é uma fonte importante de pesquisa e sua presença em grande número no Império levou diversos historiadores a buscar nas imagens elementos construtores de sua significação histórica e social, na tentativa de reconstruir o período com fidelidade. A fotografia enquanto representação do real, muitas vezes assume caráter de documentação oficial. Esse fato apenas reforça a tese de que a fotografia pode ser utilizada para a construção de um uma interpretação da realidade e ainda mais: o seu caráter realista, proveniente da relação entre o momento real e a representação, aliado ao caráter de oficialização acaba quase por determinar que contra as fotografias não existam argumentos possíveis de dubiedade.
São com essas representações que devemos ser cautelosos e recorrermos aos documentos fotográficos como fontes passíveis de algumas diferentes interpretações, além de ressaltar que toda fotografia enquanto produto cultural é trabalho de um fotógrafo, o qual também está inserido em um contexto particular e serve a um propósito ora pessoal, ora pré-determinado por alguma ideologia, ou motivação profissional. Weinstein & Booth são citados por Boris Kossoy em seu livro Fotografia e História, e aqui retomamos sua premissa para este trabaho: “perceber na imagem o que esta nas entrelinhas, assim como o fazemos em relação aos textos”, “precisamos aprender a esmiuçar as fotografias criticamente, interrogativamente e especulativamente (...)” [4].
Os costumes importados se impõem, e estão presentes nas imagens representadas pelo vestuário, e pelo caráter cênico demonstrado pela análise do cenário. As famílias em geral procuravam ser retratadas com toda pompa exigida pela pequena ética dos costumes burgueses europeus. Um livro dá um ar de intelectualidade, já a pena o faz um escritor. A coruja simboliza a sapiência, o cão fidelidade. As armas o poder. Esses símbolos laicos de dominação eram partes do estilo pictorialista dos retratos, herança das pinturas renascentistas. Esses retratos, que às vezes eram reverenciados como se os retratados estivessem presentes nas datas de comemoração e patriotismos chegavam ao povo através da fotografia. Democratizava de certe forma a oportunidade de se ter a fisionomia fixada no papel, como a dos reis, bispos deputados, dos ricos[5].
Miriam Moreira Leite afirma que apesar de as fotografias não revelarem com certeza a camada social a qual pertencem os retratados, a publicação das fotografias em periódicos dos chamados membros ilustres das comunidades vem a sublinhar uma posição social herdada ou adquirida e deixam transparecer aos olhos atentos o estilo representativo do período e sociedade em questão[6].No nosso caso que buscava parecer Europa.
Os escravos domésticos eram por vezes enfeitados e demonstrados com orgulho por seus senhores[7]. Paradoxalmente, modernidade versus arcaísmo. A presença do vestuário europeu, e costumes como uso de cachimbos e charutos exibidos com pompa e circunstância foram analisados por diversos autores e vem a reafirmar a tese que a europeização dos costumes levaria ao desenvolvimento de uma civilização nos moldes necessários à modernidade e convivia com o sistema escravista atrasado e racista, como um entrave a modernização.
Citando exemplo, alguns hábitos estudados por Luis Felipe de Alencastro[8] como o uso de mucamas ou amas de leite para amamentar os filhos da burguesia mostra um outro lado. Os retratos de amas de leite que conhecemos apresentam tão somente a imagem positiva do relacionamento afetivo da ama, com suas vestimentas européias e o bebê branco no colo. Mas a professora Miriam Moreira Leite nos mostra que: além da mortalidade infantil provocada pelas precárias condições sanitárias do Rio de Janeiro no século XIX, a prática da amamentação por escravas alugadas a particulares ou asilos de crianças abandonadas (...) além de privar os filhos de seu leite, as amas eram exploradas fisicamente ao máximo, tanto quando eram alugadas a instituições para amamentar diversas crianças, como pelo período prolongado que se exigia que se aleitassem[9].Esse aspecto revela o peso da escravidão na sociedade do século XIX e marca nitidamente o caráter civilizatório em contradição na nação tropical.
Os retratos também vinham acompanhados de dedicatórias e o verso das imagens também oferece elementos interessantes que revelam a construção de uma auto imagem de classe. As inscrições identificam personagens, desmentem anotações anteriores, criam genealogias.Para a elite cafeicultora, parece, a marca de um dos fotógrafos famosos no verso da foto funcionava como distintivo de diferenciação social.[10]
[1] Boris KOSSOY, Origens e expansão da fotografia no Brasil, p.38.

[2] Os carte de visite eram carões de visita distribuídos aos amigos e parentes, como lembrança e foram bastante populares, devido ao seu baixo custo de reprodução. A proliferação da mania deixou como legado uma enorme fonte de para estudarmos os costumes da sociedade da época.

[3] Annateresa FABRIS. Fotografia. Usos e funções no séc. XIX, p.12.

[4] Boris KOSSOY, Fotografia e História p.79.

[5] Carlos A. C. LEMOS, Ambientação ilusória. In Retratos quase inocentes, p.53.

[6] Miriam Moreira LEITE, Retratos de família, p.178.

[7] Kátia M. de Queirós MATTOSO, A opulência na província da Bahia, in: A História da vida privada no Brasil, p.166.

[8] Luis Felipe de ALENCASTRO. Vida privada e ordem privada no Império, in: A História da vida privada no Brasil, p.60.

[9] Miriam de Moreira LEITE, A Família. Século XIX. In. Retratos de família, p.70.

[10] Ana Maria MAUAD, Imagem e auto imagem no Império, in. História da vida privada no Brasil, p.225.