quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Feliz Natal, Salve Jesus, Krishna e Mithra

Por Jessé Chahad

O Natal, uma festividade amplamente celebrada, carrega consigo uma rica tapeçaria de influências que se entrelaçam ao longo da história. Sua relação com festivais pagãos, o nascimento do sol, o solstício de inverno, as figuras religiosas de Jesus, Krishna e Mithra revela uma trama cultural complexa.

Os festivais pagãos, como Saturnália e Yule, desempenharam um papel crucial nas origens do Natal. Saturnália, celebrada pelos romanos em honra ao deus Saturno, era marcada por banquetes, presentes e uma atmosfera de alegria coletiva. Similarmente, Yule, comemorado pelos povos germânicos, coincidia com o solstício de inverno e celebrava o renascimento do sol.

O solstício de inverno, ponto em que o hemisfério norte atinge sua noite mais longa e o dia mais curto, foi significativo em muitas tradições pagãs. A escolha da data de 25 de dezembro para o Natal pode ter sido estratégica, sobrepondo-se a esses festivais pagãos e cristianizando a celebração do renascimento da luz.

No contexto cristão, o Natal é associado ao nascimento de Jesus Cristo em Belém. O relato bíblico descreve a chegada do Salvador, anunciada por anjos e testemunhada por pastores. Embora a Bíblia não especifique a data, a celebração do Natal foi estabelecida pela Igreja para celebrar a encarnação de Jesus.

Paralelamente, em outras tradições religiosas, encontramos histórias de nascimentos divinos e figuras messiânicas. Krishna, uma divindade hindu, é descrito como uma encarnação do deus Vishnu, nascido para restaurar a ordem cósmica. Mithra, uma figura venerada no culto misterioso romano, também era associado ao sol e ao renascimento.

Ao explorar essas narrativas, percebemos sobreposições simbólicas. O sol, como símbolo de luz e vida, é central em muitas tradições, tanto pagãs quanto religiosas. O renascimento do sol durante o solstício ecoa metaforicamente nas histórias de nascimentos divinos, incluindo a de Jesus.

Em última análise, o Natal emerge como uma celebração complexa, tecida com fios que se estendem por culturas e religiões diversas. Suas raízes pagãs, ligadas ao solstício de inverno, se entrelaçam com a narrativa cristã do nascimento de Jesus, enquanto paralelos podem ser encontrados em figuras religiosas de outras tradições. O Natal, assim, transcende fronteiras e reflete a universalidade do anseio humano por luz, renovação e esperança.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Pedocracia e Capitalismo : a ditadura dos déspotas mirins.

                                                      

   Por Jessé Chahad

    A psicanalista e pós-doutora em psicanálise clínica, Marcia Neder, trouxe à tona um termo intrigante para descrever uma dinâmica social contemporânea que ela identifica como "pedocracia". Em seu livro "Despotas Mirins: o poder nas novas famílias" e, mais recentemente, em "Os Filhos da Mãe", a autora explora o fenômeno em que o poder nas relações familiares e sociais é exercido de forma significativa pelos filhos.

    Neder destaca a prevalência dessa cultura, ressaltando como ela não se limita apenas ao âmbito familiar, mas também permeia as estruturas educacionais. Em outras palavras, a "pedocracia" se estende para além das fronteiras do lar, moldando as interações não apenas entre pais e filhos, mas também influenciando o ambiente escolar.

    No cerne desse conceito, está a ideia de que os pais e mães contemporâneos muitas vezes se encontram em uma posição subordinada em relação aos filhos. A sociedade, de acordo com Neder, vive sob a égide de uma cultura que coloca as necessidades e desejos das crianças como uma prioridade, moldando não apenas o ambiente familiar, mas também influenciando as instituições educacionais.

    A psicanalista destaca a complexidade de romper com essa cultura arraigada, sugerindo que a "pedocracia" se tornou uma norma internalizada. Esse fenômeno pode gerar uma série de desafios, como a dificuldade dos pais em estabelecer limites adequados, a falta de autonomia das crianças e um desequilíbrio nas relações familiares.

    Ao explorar e discutir a "pedocracia", Marcia Neder levanta questões importantes sobre os paradigmas contemporâneos de poder nas relações familiares e sociais. Seu trabalho convida à reflexão sobre as dinâmicas presentes na criação dos filhos e destaca a necessidade de uma abordagem equilibrada para promover relações saudáveis e desenvolvimento adequado tanto para pais quanto para filhos.


    A relação entre crianças e consumo é uma questão complexa e multifacetada. As crianças são frequentemente vistas como consumidores, e a publicidade e o marketing muitas vezes direcionam suas estratégias para atrair esse público jovem. Há diversas razões pelas quais as crianças são consideradas uma fatia importante do mercado, e uma delas está relacionada à ideia de que elas podem não usar a razão de maneira plena ao fazer escolhas de consumo.

    Em sua fase de desenvolvimento, as crianças estão em processo de aprender e construir suas habilidades cognitivas, incluindo o pensamento lógico e a capacidade de tomar decisões baseadas na razão. Isso significa que, em comparação com adultos, as crianças podem ser mais influenciáveis e suscetíveis a apelos emocionais e visuais presentes na publicidade. Elas podem ser atraídas por cores vibrantes, personagens carismáticos e mensagens simples que despertam emoções.

    Além disso, as crianças muitas vezes têm uma compreensão limitada das estratégias de marketing e podem não ter desenvolvido as habilidades críticas necessárias para analisar e questionar mensagens publicitárias. Essa falta de discernimento pode torná-las alvos mais suscetíveis para estratégias de venda, o que faz com que as empresas vejam nelas uma fatia importante do mercado.

    As crianças também exercem uma influência significativa nas decisões de compra das famílias. Seja por meio de pedidos diretos aos pais ou pela influência que exercem sobre as escolhas familiares, as crianças têm o potencial de moldar as decisões de consumo de um lar.

    No entanto, é importante ressaltar que a relação entre crianças e consumo levanta preocupações éticas. A exploração comercial de crianças pode resultar em práticas que buscam capitalizar sua falta de discernimento e vulnerabilidade. Existem movimentos e regulamentações em diversos países para proteger as crianças contra práticas publicitárias injustas ou enganosas.

    Em suma, a consideração das crianças como consumidores não plenamente racionais destaca a importância de abordagens éticas e regulamentações que protejam os interesses e o bem-estar dos jovens consumidores, garantindo que eles sejam alvo de práticas comerciais responsáveis.

A História do Samba: Batuque, Resistência e Celebração

por Jessé Chahad

O samba, gênero musical e dança, é uma expressão cultural única que nasceu nas raízes da sociedade afro-brasileira. Sua história é um testemunho da resistência, celebração e evolução ao longo dos anos.

O samba tem suas raízes nos ritmos africanos trazidos pelos escravizados para o Brasil durante o período colonial. Os batuques e ritmos tradicionais foram mantidos vivos nas senzalas, representando uma forma de resistência cultural e identidade para aqueles que eram privados de sua liberdade.

O samba, tal como o conhecemos hoje, começou a se consolidar nas comunidades urbanas do Rio de Janeiro no início do século XX. As rodas de samba, encontros informais onde músicos, dançarinos e amantes da cultura se reuniam, foram fundamentais para o desenvolvimento do gênero.

O samba ganhou notoriedade durante o Carnaval, tornando-se a trilha sonora das escolas de samba. Nas décadas de 1920 e 1930, surgiram os primeiros desfiles de escolas de samba, marcando o início de uma tradição que se tornaria uma das maiores festas do mundo.

Artistas notáveis como Pixinguinha, Donga e Sinhô foram pioneiros na difusão do samba, contribuindo para sua aceitação e popularidade. A música evoluiu com o tempo, incorporando elementos do jazz e outros estilos musicais, resultando em diferentes subgêneros de samba, como o samba de roda, o samba de partido-alto e o samba-enredo.

Ao longo do século XX, o samba se tornou um elemento crucial na construção da identidade nacional brasileira. Sua capacidade de unir pessoas de diferentes origens e classes sociais reflete a riqueza da diversidade cultural do país.

O samba continuou a evoluir nas décadas seguintes, incorporando influências globais e mantendo sua autenticidade. Artistas contemporâneos, como Beth Carvalho, Zeca Pagodinho e Martinho da Vila, contribuíram para a expansão do gênero, garantindo que o samba permanecesse vibrante e relevante.

A história do samba é uma jornada fascinante que abrange séculos de influências culturais e experiências compartilhadas. Do batuque africano à explosão de ritmos no Carnaval, o samba é mais do que música e dança; é um testemunho da resiliência do povo brasileiro e um símbolo de celebração da vida. Seja nas ruas durante o Carnaval ou nas rodas de samba ao redor do país, o samba continua a ecoar como uma expressão poderosa da cultura brasileira.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Os Simpsons e sua contribuição para a humanidade.

Por Jessé  Chahad
Assim como qualquer expressão cultural ou artística, os desenhos animados trazem em sua composição inevitavelmente uma expressão de seu contexto histórico। Os temas tratados, o estilo do traço, a composição sonora, sem contar na idéia original da criação de certo personagem estão sempre “presos” a sua historicidade, e através do humor produzem discursos e revelam situações que podem aqui ser interpretadas como representações de uma visão determinada da História।
A escolha do desenho Os Simpsons, além da óbvia simpatia que este autor desenvolveu em mais de uma década de assídua audiência devotada a este programa, se deu pela riqueza e inteligência presente neste desenho, e que eventualmente não estão presentes nos demais desenhos contemporâneos. Apenas um episódio de uma temporada qualquer já seria suficiente para uma longa análise, e aqui iremos recortar alguns, com a intenção de demonstrar através da argumentação crítica algumas características da sociedade que produz e consome o desenho.

A escolha da nona temporada da série, exibida nos anos de 1997 e 1998, foi motivada pelo fato de que após quase dez anos de exibição, o programa já havia definitivamente se amadurecido e conquistado espaço cativo na mídia. As transformações sofridas pelos personagens a cada temporada já seria um assunto de imensas proporções, a se estudar mais profundamente, quem sabe em algum trabalho futuro.


Breve apresentação
Os Simpsons, de Matt Groening, é o desenho animado de maior longevidade na história da TV nos Estados Unidos. Tem, ao todo, dezessete temporadas e mais de 340 episódios desde sua estréia em 17 de Dezembro de 1989.
Surgiu inicialmente em 1987 como uma série de curtas de trinta segundos produzidos por Groening para a série de televisão “The Tracey Ullman Show.” A reação dos telespectadores foi tão positiva que "Os Simpsons" evoluiu para um programa, estreando como um especial de Natal de meia hora em 17 de dezembro de 1989, e depois como série regular em 14 de Janeiro de 1990. A série foi elogiada pela crítica e ganhou inúmeros prêmios, inclusive um prêmio Peabody, dezessete prêmios Emmy, doze prêmios Annie, três prêmios Genesis, sete prêmios International Monitor e quatro prêmios Environmental Media. Em 14 de janeiro de 2000, a série ganhou uma Estrela na Calçada da Fama em Hollywood. É visto em mais de cem países.

Altamente satírico, o seriado critica a sociedade estadunidense como um todo. Tem como alvos principais a classe média e a mediocridade americana. O canal de TV a cabo FOX, principal veiculador do desenho, também é motivo das piadas da série. O nome da cidade em que se passa o desenho, Springfield, foi escolhido por ser um nome comum de cidades americanas - todo estado tem a sua - o que garante uma crítica ainda mais abrangente ao modo de vida americano.
As autoridades são constante alvo da sátira ferina do desenho. Isto provavelmente explica a reação negativa do programa junto a movimentos conservadores. Esta reação foi mais forte nas primeiras temporadas de Simpsons, onde praticamente todas as figuras autoritárias que aparecem no programa são ridicularizadas.

A família

Homer Jay Simpson - o pai da família. Trabalha como inspetor de segurança em uma usina nuclear. Adora beber cerveja e comer rosquinhas açucaradas. É um alienado, patético, sem muita finalidade na vida e um completo ignorante. Mundialmente consagrado por seu bordão "D'oh!", utilizado quando faz alguma coisa errada sem querer.
"Marge" Simpson Bouvier - a mãe da família, uma típica dona-de-casa americana conservadora. Frequentemente serve como voz da razão nos episódios.
Bart Simpson - o filho mais velho, com 10 anos, um arruaceiro que adora andar de skate e atirar com estilingue. Costumeiramente se dá mal na escola e figura sempre como filho-problema.
Lisa Simpson - a filha do meio, é intelectual e vegetariana, toca saxofone e adora jazz. É adepta do budismo em oposição ao resto da família, que segue o cristianismo. Diferencia-se dos outros Simpsons, principalmente de Bart e Homer, por ser politicamente correta, inteligente, intelectual e com forte senso de justiça.
Maggie Simpson - a filha mais nova, de apenas um ano. Geralmente é ignorada pelo pai, mas não sai do colo da mãe.
Abraham Simpson - o avô, pai de Homer. Ex-veterano da Primeira e Segunda Guerra Mundial vive hoje no asilo e normalmente é desprezado e maltratado pelo filho.

Episódio “O ônibus” (15/02/1998)

Neste episódio, a trama central se dá em torno do acidente com o ônibus escolar, que após cair de uma ribanceira, fica a deriva no mar e leva as crianças a ficarem sozinhas em uma ilha deserta. As crianças estavam indo a um encontro escolar das nações, onde cada um deveria representar uma nação, e assim como nas reuniões da ONU.Previamente na sala de aula, o diretor da escola tenta ensaiar com seus alunos, como seria o evento; alguns momentos depois, uma provocação do aluno que representava o Japão a um colega que representava o México, uma discussão generalizada se inicia e transforma o ensaio em uma tremenda confusão, que se encerra com a advertência do diretor: “ Atenção! Vocês querem ser que nem a ONU, ou querem só fazer bagunça e perder tempo?”.
O papel ridículo atribuído à Organização das Nações Unidas de maneira irônica pelo diretor Skinner, se dá em um momento em que essa instituição desempenha um papel quase simbólico, visto seu enfraquecimento após a queda do muro de Berlim. A Primeira Guerra do Golfo já havia sido ratificada apesar da posição contraria da ONU. Anos mais tarde, a Organização seria totalmente ignorada em relação a sua posição contraria a Segunda Guerra do Golfo. As tomadas de decisões unilaterais por parte do governo americano em sua política econômica dos últimos três mandatos vêm demonstrando que sua força bélica vale mais do que qualquer congresso mundial.
Após o acidente, as crianças se encontram em uma ilha, aparentemente não habitada, e apesar do medo inicial, logo surge a figura de Bart, mostrando como seria boa a vida selvagem e livre, principalmente sem a presença de adultos. Surge então uma cena imaginada por Bart, de uma vida em comunidade, funcionando perfeitamente com abundancia de mantimentos sem o esforço do trabalho e as obrigações rotineiras. De acordo com suas palavras: “- Seremos como a família Robinson suíça, com direito a falar palavrão!”. Bart faz aí uma alusão a outro seriado da TV americana, Os Robinsons, que apesar de terem naufragado em uma ilha deserta, através de seu esforço e trabalho duro conseguiram reconstruir sua vida, dentro do american way of life.
O sonho da vida livre é substituído pelo fracasso da empreitada das crianças, pois a falta de alimentos os leva a entender quais seriam os princípios básicos para sua sobrevivência. Após a divisão dos últimos mantimentos encontrados por Bart no ônibus afundado, as crianças reservam parte dos alimentos para o dia seguinte, e ao acordar percebem que a comida havia sumido.
Ao invés de se preocupar em resolver o iminente problema da falta de alimentos, as crianças resolvem se organizar para determinar de quem havia sido a culpa pelo sumiço das ultimas provisões. É organizado então um tribunal, com júri, réu advogado e juiz, que mesmo sem provas irá atentar contra a aparente culpa do personagem Milhouse. Para a sociedade do espetáculo, a americana no caso tratado, é mais importante a produção de um sujeito culpado do que a real possibilidade de solução de determinado problema. Assim opera também a mídia, ou o quarto poder, como é chamado atualmente este meio de comunicação.
Lisa, sempre sagaz, observa então que um javali lambe o musgo das pedras e assim retira os nutrientes necessários à sua sobrevivência. Logicamente para Lisa, estaria resolvido o problema da fome, pois todos poderiam se alimentar do musgo. A cena é cortada e logo aparece o javali espetado e sendo assado em uma fogueira. Esta elipse nos leva a entender que mesmo com a garantia de sobrevivência através do musgo, aquela comunidade optou por matar o animal e se prover de sua carne, opção carnívora feita pela humanidade ao longo de seu desenvolvimento.
A necessidade de se alimentar teria feito com que as crianças aprendessem a viver em sociedade, demonstrando que todas as nações podem ser iguais, se suas necessidades forem iguais- a fome é linguagem universal- independente da pátria ela pode existir, o que nos iguala como humanos.
Paralelamente ao caso do naufrágio, a trama se completa com uma outra história, protagonizada por Homer. Após descobrir que seu vizinho abrira um negócio na internet, Homer se vê na obrigação de se equiparar ao seu vizinho, e ter também seu próprio negócio virtual. Ele monta um escritório improvisado, com a ajuda de Marge cria um nome pomposo para sua empresa, sem nunca mencionar qual o ramo de negócio sua empresa se dedica.
Na década de 90, a popularização da internet ainda se dava mais por meio da mídia do que por suas reais necessidades e utilidades no cotidiano das pessoas. A desmaterialização do capital, fenômeno intensificado em sua ultima fase é representada com humor no desenho, pois mesmo sem produto a ser vendido, ou serviço a ser oferecido, a falsa empresa virtual criada por Homer desperta interesse do mega empresário Bill Gates, o criador do Windows e papa de uma nova geração de capitalistas que fizeram suas fortunas por meio de empresas virtuais e produtos tecnológicos ligados ao novo mundo do trabalho.
Bill Gates aparece no episódio representado por ele mesmo, e vem com uma proposta para fechar a empresa de Homer. Acreditando ter feito um bom negócio, Homer concorda logo com o fechamento da falsa empresa, e se surpreende ao ver Bill Gates ordenar a seus capangas que destruíssem seu escritório, mesmo sem saber ao certo que tipo de empresa seria aquela. O personagem ironiza de maneira lógica:
“- Você acha que eu fiquei rico assinando cheques?”
A piada ilustra um ramo empresarial que apesar de super novo e moderno se apóia em práticas já tradicionais da economia para garantir o sucesso dos seus empreendimentos. Formação de cartel, monopólio e espionagem industrial foram algumas das acusações que Gates sofreu nos últimos anos e muitos são os processos que responde ao mesmo tempo em que sua fortuna sempre aumenta.

Tanto no infortúnio das crianças quanto no de Homer está impressa a idéia de que só se pode conseguir sucesso através do trabalho honesto e dedicado. A ética do trabalho, tão enraizada na ética protestante que colonizou os Estados Unidos aparece no desenho que apesar de toda sua roupagem crítica e contestadora, não esconde o contexto histórico estrutural a que está submetido.
Por mais que tente conferir uma subversividade, o desenho também está repleto de lições moralizantes, pois a partir do escárnio e de certas situações tratadas é que extraem a moral, ou fundamentalmente a visão de História que ali está se explicitando.
O estudo de documentos que não se propõe a tratar de História é importante, pois diversas vezes são vistos como ingênuos, ou ainda não históricos. Tal equívoco não deve ser cometido pelo historiador atento que deve levar em consideração os novos estudos e os novos documentos, uma vez que só podemos entender a sociedade através da sua problematização.
A análise de filmes, desenhos, jogos ou revistas em quadrinhos é da maior importância, pois dentro de cada documento reside uma visão de História a ser percebida a partir da prática de reflexões acerca da sociedade e sua historicidade.As diferentes filosofias da História contidas nos mais diferentes documentos faz com que o trabalho de investigação historiográfica e analise documental sejam encarados como um exercício de desvendar os conceitos –chave para o entendimento das praticas históricas e sociais, dentro de sua totalidade possível.

Sociedade do Hedonismo

por Jessé Chahad

Antes de tudo temos que definio que o Hedonismo é uma doutrina, ou filosofia de vida, que defende a busca por prazer como finalidade da vida humana. Buscar prazer é o que move as paixões, os desejos e todo o mecanismo da vida, sendo, portanto, na visão de hedonistas, a primeira e mais completa ponte para a finalidade última da vida: a felicidadeO uso de drogas e bebidas tem uma função diferente de acordo com o contexto histórico. O vinho desde tempos remotos foi utilizado no sentido de busca de prazer, mas sempre dentro do contexto também alimentício, pois acompanhava o banquete. A busca pelo prazer então não estava relacionada diretamente ao consumo do vinho, mas sim ao consumo em grupo e motivado por um evento comemorativo. O mito antigo de Dionísio já alertava que o vinho deveria ser diluído em água, a fim de evitar a embriagues, e exercer o autocontrole. O vinho, ou o uso do vinho no mundo clássico era então sinônimo de  responsabilidade.
Certas drogas, por sua vez foram largamente utilizadas com sentido religioso por diversas civilizações, explorando suas propriedades alucinógenas em práticas rituais, em busca do contato com o sagrado, ou divino. Na América, temos o uso dessas substâncias em todas as civilizações principais, Maias, Astecas e Incas, tanto no contexto religioso, quanto medicinal, dois planos que então não se separavam.
Se utilizarmos um anacronismo a nosso favor, pensando no campo da história, onde a problematização do passado se dá a partir de paradigmas do presente, o uso religioso, medicinal ou social foi suplantado pelo uso em busca do prazer individual e imediato, hedonista, fruto da sociedade extremamente individualizada que carrega o fardo da ditadura da felicidade.
A ingestão de bebidas alcoólicas por si só já virou uma cultura, independente do caráter festivo ou reunião em grupo, mas não mais está ligada à idéia de responsabilidade, e sim pelo contrário, para se permitir ser irresponsável e aproveitar os efeitos da embriagues sem se preocupar com o mundo real. A propaganda divulgava o american way of life como modelo civilizatório e nele estava contida a idéia de prazer, conforto no sentido de ser feliz.
Ora, se o mundo pós-guerra estava destruído, a impossibilidade da felicidade real levava as pessoas à loucura, ou a busca de fuga de realidade, e as bebidas e drogas assumiam novos papéis. As bebidas ainda mais que as drogas, pois enquanto as drogas passaram por um processo de construção de preconceito e proibição que não serão aqui analisados, as bebidas têm a propaganda a seu lado e estão diretamente ligadas a ideia da busca do prazer.
Daí o desenvolvimento de inúmeras doenças crônicas ligadas ao conceito criado de escapismo, como dependência química ou alcoólica. No caso das drogas a proibição gerou problemas estruturais gravíssimos principalmente no terceiro mundo, pois a simples proibição obviamente não acabaria com a demanda da sociedade pelo seu consumo, visto que foi o próprio sistema capitalista pós moderno que levou a inversão de valores e de costumes, pois o escapista quer escapar de algo, e esse algo é o mundo que te obriga a ser feliz, mas não te dá condições materiais de alcançar a felicidade, ainda que fútil e fabricada para mascarar os horrores da guerra.
Para aqueles que não tem interesse no uso de bebidas e drogas em busca do prazer, o capitalismo encontrou a solução através da fetichização de outros alimentos em geral. Retomando a ideia de Braudel do luxo à mesa, e traduzindo o luxo na contemporaneidade por prazer, a criação de um mercado de alimentos que não mais ligados apenas à necessidade de nutrição, funcionam como as drogas e bebidas no sentido do escapismo. A proliferação da obesidade, doença antes considerada genética é evidencia de que a sociedade se alimenta de supérfluos, e essa necessidade vem suprir a demanda pelo prazer, que acontece de maneira legal e indiscriminada, ignorando os malefícios para o organismo, mas feliz em poder consumir aquele produto que a sociedade diz que você deve consumir para ser uma pessoa feliz, sempre com o auxilio da propaganda.
A história da alimentação então relacionada com historia social e cultural nos faz enxergar que os costumes e pratica alimentares da sociedade são parte do seu contexto histórico, e a reinvenção de valores ainda se dá a partir das camadas dominantes. Em tempos contemporâneos de superprodutividade, a fome e a miséria ainda resistem e se institucionalizaram para que pudessem exercer seu papel no sistema capitalista.
A busca pelo prazer nas camadas pobres é realizada pela simples presença da comida, enquanto a minoria abastada cria e recria modas e luxos a fim de buscarem também o seu prazer. Nos dois casos, a realização momentânea de um ato que trará felicidade e satisfação se encerra ao final da refeição. Se alimentar e se divertir ao mesmo tempo é o panis et circenses dos nossos dias que acomoda a sociedade, dando a impressão de estar plena e satisfeita com a nossa realidade apocalíptica e desigual.


Contradição: a identidade nacional

Por Jessé A. Chahad
Entre as décadas de 50 e 80, a sociedade brasileira presenciou um movimento pendular de prosperidade que logo depois foi suprimido pelo sentimento de pessimismo.
De maneira geral, é razoável acreditar que o Brasil apresentou grandes taxas de crescimento, e investiu em infra-estrutura de maneira suficiente para o desenvolvimento do sistema capitalista. Assim como até então, os modelos importados, as idéias fora do lugar, a modernização do país se dava tardiamente se comparamos com outros paises, o México, por exemplo.
A inclusão do Brasil no sistema capitalista viria a complementar o modelo americano, criador de modas e costumes que agora contava com a indústria voltada a produção de eletrodomésticos e a indústria da propaganda, ditadora dos novos costumes que deveriam ser difundidos pelo mundo, principalmente após a vitória na Segunda Guerra Mundial.
Se modernidade era malha viária, investimento em energia e participação na sociedade de consumo, então já estava terminado o processo civilizatorio proposto pelo american way of life, mas em um país que já vivia as contradições geradas pelo sistema colonial, e posteriormente pela importação de usos e costumes europeus ficava ainda mais complicado o desenvolvimento real do país.
Novais lembra que historicamente a modernização resultaria da tensão permanente entre o conjunto de valores mercantis, utilitários, (...) capitalistas que corporificados em instituições (...) põe freios ao funcionamento desregulado e socialmente destrutivo do capitalismo, e isso não se configura no Brasil. Sendo assim a seu próprio modo, a sociedade procurou se adaptar, e mesclar seu passado colonial, paternalista e religioso com o mundo freneticamente novo que era trazido de fora mais uma vez.
Citando Caio Prado Jr., não há nexos éticos entre os homens, mas só relações de exploração econômica e de dominação política. A sociedade baseada na idéia do favor e do jeitinho se apropriava do que julgava necessário ao seu desenvolvimento, de um lado a classe dominante se favorecia de diversas inovações tecnológicas, e do outro, a população rural e os descendentes de negros ficavam excluídos do processo, e buscavam se inserir na modernidade abandonando as práticas campesinas e migrando para as cidades.
Com o avanço e consolidação do capitalismo no Brasil, estaria consolidada a cena da luta de classes, com todas as desvantagens necessárias para enfraquecer qualquer movimento, as ditaduras militares viriam a congelar as estruturas de modo que quanto mais o país se desenvolveu e enriqueceu, maior se tornou a população pobre, e a concentração de renda é a maior do mundo, pelo menos até o fim do período recortado.
Nos dias de hoje, o Brasil ainda figura entre os mais ricos, principalmente se considerarmos o seu potencial para o capital financeiro especulativo, a nova face do capitalismo que acirra ainda mais as diferenças e determina de uma vez que a mobilidade social proposta pelo sistema só acontece dentro das classes favorecidas.
Se há uma peculiaridade exclusiva do povo brasileiro, talvez resida na capacidade de se abster e não perceber tais contradições. Um exemplo simples se dá em qualquer fila de banco, onde os pobres se aglomeram, geralmente para pagar alguma conta, que religiosamente deve ser honrada. De pé, e sem direito a um mero copo de água, é raro algum cidadão se lembrar de que o banco que ele está lucra a cada semestre quantias na casa dos bilhões.
A valorização da ética protestante do trabalho ainda faz com que a sociedade busque se inserir no sistema, como empregado, sendo elo principal da corrente que nunca será quebrada, pois o emprego lhe garantiria o mínimo de sustento e de inclusão no mercado de consumo, esse sim o verdadeiro objetivo do brasileiro de hoje. Desde continue exercendo seu papel na divisão do trabalho internacional, e de periferia na economia mundial, tudo continua funcionando perfeitamente para quem está no comando.
Talvez ainda não tenha sido superado o sentido da colonização, de abastecer o mercado externo com matérias primas e ficarmos com o resto de tudo, seja no âmbito social ou cultural. A confusão entre público e privado é herança colonial, e a sociedade brasileira como sociedade de aparências foi tratada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.
A modernização no Brasil não contou com planejamento de acordo com as demandas da nossa sociedade e nem deveria ser, pois serviria e serviu ao capital estrangeiro como sempre foi. Inúmeros são os fenômenos produzidos culturalmente para tentar amenizar as contradições, que sempre deverão existir, pois são parte crucial do funcionamento do capitalismo. Em um jogo de futebol, o esporte símbolo do país, pobres e ricos chegam a ficar lado a lado na torcida, participando do mesmo mundo, em busca de um mesmo ideal, e com condições semelhantes. Porém ao sair do estádio, cada um volta ao seu nicho, e o pobre vai passar a noite tentando voltar de ônibus para casa enquanto seu amigo de agora pouco passa diante de seus olhos de carro importado.
Portanto, se para Maria da Conceição Tavares nós copiamos tudo menos o que é essencial: formas de organização capitalista capazes de assegurar um mínimo de capacidade autônoma de financiamento e inovação, esse processo não se deu por acaso, pois o que copiamos foi exatamente o necessário para que entrássemos na nova ordem mundial sem a que ocorresse qualquer mudança da estrutura social já presente, e que garantiria permanência das mesmas classes dominantes no poder.

domingo, 4 de setembro de 2022

O Escriba e o legado da escrita no Antigo Egito


O Escriba, de Alessandro Roccati, que constitui o terceiro capítulo do trabalho organizado por Sérgio Donadoni, O Homem egípcio, obra que traz estudos de diversos especialistas, retrata a sociedade antiga do Egito a partir da análise de figuras humanas essenciais como o Sacerdote, o Escriba, o Faraó, entre outros.
O desafio é enorme se considerarmos que para o estudo de um período tão distante na cronologia, existam não mais do que fragmentos que procuramos, à luz dos debates atuais, interpretar e entender os aspectos únicos de uma sociedade hierarquizada e bastante organizada dentro dos seus próprios conceitos.
O Escriba será objeto de estudo de Roccati, com o objetivo de demarcar as características que diferenciavam esta categoria da dos indivíduos comuns, a fim de demonstrar a complexidade das relações sociais e políticas do período. Para isso será necessário definir quem era o Escriba, e quais eram suas funções e deveres dentro do sistema de classes e ao longo da passagem do tempo. Além disso, ele se dedica a aspectos de caráter pessoal e intelectual da figura do escriba em sua construção.

Alessandro Roccati, italiano, é graduado em Letras pela Universidade de Roma e com apenas 26 anos já obtivera especialização em Egiptologia em três importantes instituições, entre elas Oxford. Curiosamente seus primeiros trabalhos se iniciaram apenas após sua permanência de dois anos no serviço militar.
Sempre vinculado a museus, procura estudar os papiros, manuscritos, epígrafes, túmulos. Participa de escavações arqueológicas e publica diversos trabalhos dedicados à história da cultura egípcia antiga, sua literatura, seus elementos de linguagem e as características do seu cotidiano em diversos contextos históricos.


Se procurarmos na estrutura do texto fazer uma divisão a fim de facilitar seu entendimento, criaremos na verdade um problema. Apenas a separação necessária entre a introdução acerca do que se trata o estudo, os argumentos defendidos e a conclusão, é utilizada para garantir a fluência, coesão e unidade ao texto. A trajetória da figura do escriba é relatada em diversos momentos do Egito Antigo, destacando em cada período a sua significância e a sua relação com o poder. Isso nos leva a considerar que escrita então, torna-se objeto inseparável de um estudo que se propõe a tratar do Escriba.

Para um especialista em letras clássicas egípcias como Roccati, fica difícil não deixar transparecer em suas palavras, quase que uma apologia à escrita, e mostra como ela se difundiu, e foi utilizada dando exemplos que remetem aos 2º e 3º milênios.
A associação entre língua e escrita era necessária às práticas religiosas e rituais, que conferiam a alguns escribas um caráter quase mágico que o autor explica quando tenta definir o papel do que chama de sacerdote leitor. A leitura ritual, dos textos sagrados requeria a habilidade não só do conhecimento da escrita, mas principalmente a capacidade de interpretação dos signos, que em sua forma gráfica ou lingüística poderiam apresentar significados diferentes se não fossem lidos com destreza.



Se quisermos cometer um anacronismo, podemos comparar as dificuldades do sacerdote leitor ao interpretar os textos sagrados tão distantes no tempo com os problemas correntes da Arqueologia que através de poucos vestígios legados por tempos ainda mais distantes, tentam novas teorias e releituras em busca de equívocos, ou ao menos de novas possibilidades de entendermos aquelas escritas a partir das inovações e descobertas da Lingüística.
Apesar de a condição de escriba se considerada fator de diferenciação social em relação a homens que não liam ou escreviam, a classe estava sujeita a hierarquia interna que se formava de acordo com os níveis de conhecimento e de utilização da escrita. O autor cita como exemplo, os hieróglifos do túmulo de Djau, em Abidos (finais da 4º dinastia, aprox. 2200 a.C.), que revelam que Djau foi escriba dos rolos divinos e era chefe dos que escreviam actas regias, além de ser sacerdote leitor. Em tempos em que estado e religião se fundiam a busca do conhecimento era necessária para ascensão e participação ativa no processo.



De menor importância na hierarquia, mas participativos no funcionamento da sociedade estavam os escribas que apenas podiam ler os números, ou dominavam a escrita de maneira simples, necessária para contabilidade. O registro dos rendimentos propiciava o inventariado dos produtos, e principalmente a distribuição de recursos. A profissão de escriba passa então a ser ambicionada por permitir estar ao lado do corpo administrativo, seja econômico ou religioso, e aproxima o escriba das classes superiores, dos funcionários e sacerdotes, e certas vezes mesmo após sua morte teria garantido certo privilégio ao lado dos deuses.



Ao deixar de lado a questão das funções do escriba, o autor se interessa em trazer aspectos de caráter pessoal em sua construção da figura do escriba. Talvez nem todos gozassem de conhecimento e intelectualidade notável, a maioria talvez apenas reproduzisse mecanicamente os ensinamentos aprendidos. Mas interessa a Roccati a idéia de que cada vez mais o conhecimento trazia intelectualidade, e a escrita, e a leitura fecundariam o embrião que viria a formar a futura classe administrativa dominante de magistrados. Claro, guardadas as proporções de mobilidade social, era inevitável que o conhecimento da escrita era requisito mínimo e cada vez mais importante, se difundindo e multiplicando suas formas de maneiras diversas no longuíssimo tempo.

Podemos pensar a partir de uma passagem do texto, uma citação que segundo o autor vem confirmar um antigo conceito (...) de que a escrita é mais duradoura do que a pedra com que foram construídas as pirâmides e que por isso, quem a sabe utilizar está mais seguro do que as múmias que foram encerradas em suntuosos sepulcros. Devemos lembrar que apesar de sólida, a escrita que até hoje nos é fundamental não se apresenta em blocos, como os das pirâmides. A escrita, como a língua é orgânica e sofre diversas modificações de acordo com o contexto, a cultura e a própria passagem do tempo.
A importância da escrita, e sua transformação de instrumento do Estado a objeto de conhecimento pessoal do escriba, não configuram um deslocamento de sua função, mas talvez a busca de ascensão em uma sociedade marcada fortemente pelas desigualdades e pouca mobilidade. Alessandro Roccati, especialista em línguas, literatura, cultura tece suas teorias dentro de uma esfera acadêmica, fruto de uma sociedade em que a ascensão social é possível através da busca de conhecimento. A cultura da meritocracia pode ou não ser um reflexo dos tempos Antigos, afirmação que talvez jamais venhamos a confirmar, porém influencia a construção da imagem do escriba feita pelo autor no texto.

Dentro de uma sociedade que pretende ser funcional, onde cada figura tem o seu papel, a intenção do texto é mostrar que na antiguidade podemos encontrar subsídios para afirmar que o lugar dos intelectuais, daqueles que tem o conhecimento, é destacado do comum, e sempre está aliado ao poder. Deter o conhecimento nos dias de hoje é deter uma forma de poder sobre os demais, e como só podemos entender o passado a partir das formulações de hoje, não podemos tomar nenhuma construção como fiel, ou definitiva, seja do escriba, seja do funcionário.















Exemplo de papiro egípcio datado de mais de 5.000 anos