O Marco Civil da Internet, sancionado no Brasil em 2014, é uma das legislações mais importantes do mundo no que diz respeito à regulação da internet. Ele estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, além de determinar diretrizes para a atuação do Estado. No entanto, a implementação e a eficácia dessa lei têm sido constantemente desafiadas por grandes corporações tecnológicas, que frequentemente se consideram acima das regulações estatais.
Empresas como Google, Facebook e Amazon, muitas vezes, utilizam sua influência global para pressionar governos e moldar regulamentações de acordo com seus interesses econômicos. O filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman, em sua obra Globalização: As Consequências Humanas (1998), argumenta que a globalização econômica permite que grandes corporações ajam como entidades supranacionais, desafiando a soberania dos Estados e enfraquecendo suas capacidades regulatórias. Essas empresas não apenas evitam a responsabilidade legal em muitos casos, como também promovem a ideia de que a internet deve permanecer livre de regulamentações estatais, associando qualquer tentativa de regulação à censura ou ao cerceamento da liberdade de expressão.
Essa postura de se colocarem acima do Estado reflete uma tendência mais ampla do capitalismo contemporâneo, que, segundo David Harvey em O Enigma do Capital (2010), busca constantemente expandir suas fronteiras e derrubar barreiras, inclusive as estatais, para garantir a acumulação de capital. Harvey descreve como o capital não se contenta com fronteiras nacionais ou regulamentações que possam limitar seu crescimento. As corporações transnacionais, ao tentarem moldar as regras do jogo, também tentam enfraquecer as democracias, criando um ambiente onde suas operações podem ser maximizadas sem interferências.
Além disso, Naomi Klein, em seu livro A Doutrina do Choque (2007), explora como crises e conflitos são frequentemente usados como oportunidades para a implementação de políticas neoliberais que beneficiam as grandes corporações. Klein argumenta que essas empresas lucram não apenas em períodos de estabilidade, mas também em tempos de crise, ao pressionar por reformas que diminuem o papel do Estado e ampliam o espaço para o livre mercado. Nesse sentido, a resistência das grandes corporações ao Marco Civil da Internet pode ser vista como parte de uma estratégia mais ampla para desestabilizar regulamentações estatais e moldar um ambiente econômico global que privilegia seus interesses.
Essas dinâmicas colocam em risco não apenas a soberania nacional, mas também a própria ideia de uma internet como espaço democrático e acessível a todos. A resistência ao Marco Civil da Internet por parte dessas corporações deve ser entendida como parte de um movimento mais amplo do capitalismo contemporâneo que busca constantemente expandir suas fronteiras à custa do bem-estar social e da governança democrática. Portanto, é crucial que os Estados e a sociedade civil se unam para resistir a essas pressões e garantir que a internet permaneça um espaço regulado de maneira justa, transparente e democrática, onde os direitos dos cidadãos sejam prioritários frente aos interesses corporativo.
Defender o Marco Civil da Internet é crucial não apenas para garantir um ambiente digital justo, mas também para combater os efeitos corrosivos da chamada era da pós-verdade. Esta era, caracterizada pela prevalência de informações falsas e distorcidas—frequentemente impulsionadas por interesses econômicos e políticos—coloca em risco a própria essência da democracia. A propagação de fake news, muitas vezes amplificada por algoritmos que priorizam o engajamento acima da veracidade, subverte o debate público e mina a confiança nas instituições.
O filósofo alemão Jürgen Habermas, em sua teoria da ação comunicativa, enfatiza a importância de um espaço público racional e deliberativo para o funcionamento saudável de uma democracia. Na era da pós-verdade, esse espaço está cada vez mais comprometido pela disseminação de desinformação, que cria um ambiente onde a verdade se torna maleável e as narrativas falsas ganham predominância. O Marco Civil da Internet, ao estabelecer princípios de neutralidade, privacidade e responsabilidade, oferece uma estrutura regulatória que pode ajudar a mitigar esses efeitos, promovendo um ambiente mais transparente e menos suscetível à manipulação.
O impacto das fake news é amplamente documentado em eventos recentes, como as eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2016 e o referendo do Brexit no Reino Unido. Em ambos os casos, a desinformação desempenhou um papel significativo em influenciar a opinião pública, muitas vezes em detrimento da verdade e da racionalidade. A socióloga Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância (2019), argumenta que as grandes plataformas digitais se beneficiam da disseminação de desinformação, uma vez que o engajamento—independentemente da veracidade do conteúdo—é monetizado. Zuboff adverte que, sem regulamentações adequadas, como as previstas pelo Marco Civil da Internet, a internet continuará a ser um terreno fértil para a desinformação e a manipulação em massa.
Além disso, a falta de regulamentação pode resultar em um espaço digital onde a manipulação da informação se torna uma ferramenta de poder, capaz de moldar realidades políticas e sociais. O filósofo Michel Foucault, em seus estudos sobre poder e discurso, destacou como o controle da informação e do conhecimento pode ser usado como um meio de dominação. No contexto da era digital, esse controle está nas mãos de poucas corporações que, se não forem adequadamente regulamentadas, podem exercer uma influência desproporcional sobre a sociedade.
Portanto, o Marco Civil da Internet é uma peça fundamental na construção de um ambiente digital mais equilibrado e democrático. Ele oferece as bases para combater a desinformação e proteger o espaço público digital contra os abusos de poder das grandes corporações tecnológicas. Defendê-lo e aprimorá-lo é essencial para garantir que a internet continue sendo um espaço onde a verdade possa prosperar, e onde a democracia possa florescer em meio a um diálogo racional e bem-informado.
A diferença entre liberdade de expressão e a liberdade para fazer o que se quiser, como espalhar fake news, discurso de ódio e conteúdo relacionado à pedofilia, é fundamental para entender os limites necessários em uma sociedade democrática. A liberdade de expressão é um direito essencial garantido por várias constituições e tratados internacionais, e permite que indivíduos expressem suas opiniões, pensamentos e crenças sem medo de repressão. No entanto, esse direito não é absoluto e deve ser exercido com responsabilidade, considerando os direitos dos outros e a preservação da ordem pública.
A liberdade de expressão, conforme definida por pensadores como John Stuart Mill em sua obra Sobre a Liberdade (1859), é crucial para o desenvolvimento da verdade e para o progresso social. Mill argumenta que, através do livre debate e da troca de ideias, a sociedade pode discernir a verdade e corrigir erros. No entanto, Mill também reconhece que essa liberdade tem limites quando começa a prejudicar outros, como no caso de incitação à violência ou ao ódio.
Por outro lado, a "liberdade" para espalhar fake news, discurso de ódio ou conteúdos ilícitos, como os relacionados à pedofilia, não se enquadra no conceito de liberdade de expressão. Esses atos não contribuem para o debate público construtivo e, em vez disso, causam danos significativos à sociedade. A disseminação de fake news, por exemplo, distorce a realidade, engana o público e pode ter consequências graves, como vimos em eventos políticos recentes. Hannah Arendt, em A Mentira na Política (1972), explora como a manipulação da verdade pode ser usada como ferramenta de controle e dominação, subvertendo a democracia e minando a confiança nas instituições.
Da mesma forma, o discurso de ódio, que promove a discriminação, a violência e o preconceito contra grupos específicos, não é uma expressão legítima de opinião, mas uma forma de agressão verbal que pode levar a atos de violência física. O filósofo Karl Popper, em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1945), discute o "paradoxo da tolerância", onde a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da própria tolerância. Ele argumenta que uma sociedade tolerante deve ser intolerante com a intolerância, ou seja, deve limitar a liberdade de expressar ideias que incitem ódio e violência.
Conteúdos relacionados à pedofilia, por sua vez, são não apenas ilegais, mas representam um abuso grave e a exploração de indivíduos vulneráveis, violando direitos humanos fundamentais. A defesa desses atos não pode ser considerada uma forma legítima de expressão, pois envolve a violação dos direitos de outrem e perpetua práticas criminosas.
Portanto, é essencial distinguir entre a liberdade de expressão, que é vital para uma sociedade democrática e saudável, e a pretensa "liberdade" para cometer atos prejudiciais e criminosos sob o pretexto de liberdade individual. Regulamentações como as previstas no Marco Civil da Internet e outras legislações de proteção à integridade digital buscam estabelecer esses limites, garantindo que o espaço público digital seja usado de maneira que respeite os direitos de todos e promova um ambiente seguro e justo para a troca de ideias.
Referências Bibliográficas:
Bauman, Zygmunt. Globalização: As Consequências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Harvey, David. O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2010.
Klein, Naomi. A Doutrina do Choque: A Ascensão do Capitalismo de Desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
Habermas, Jürgen. Teoria da Ação Comunicativa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
Zuboff, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância: A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.
Foucault, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
Mill, John Stuart. Sobre a Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Arendt, Hannah. A Mentira na Política. In: Crises da República. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Popper, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. São Paulo: Itatiaia, 1974.
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