Assim como qualquer expressão cultural ou artística, os desenhos animados trazem em sua composição inevitavelmente uma expressão de seu contexto histórico। Os temas tratados, o estilo do traço, a composição sonora, sem contar na idéia original da criação de certo personagem estão sempre “presos” a sua historicidade, e através do humor produzem discursos e revelam situações que podem aqui ser interpretadas como representações de uma visão determinada da História।
A escolha do desenho Os Simpsons, além da óbvia simpatia que este autor desenvolveu em mais de uma década de assídua audiência devotada a este programa, se deu pela riqueza e inteligência presente neste desenho, e que eventualmente não estão presentes nos demais desenhos contemporâneos. Apenas um episódio de uma temporada qualquer já seria suficiente para uma longa análise, e aqui iremos recortar alguns, com a intenção de demonstrar através da argumentação crítica algumas características da sociedade que produz e consome o desenho.
A escolha da nona temporada da série, exibida nos anos de 1997 e 1998, foi motivada pelo fato de que após quase dez anos de exibição, o programa já havia definitivamente se amadurecido e conquistado espaço cativo na mídia. As transformações sofridas pelos personagens a cada temporada já seria um assunto de imensas proporções, a se estudar mais profundamente, quem sabe em algum trabalho futuro.
Breve apresentação
Os Simpsons, de Matt Groening, é o desenho animado de maior longevidade na história da TV nos Estados Unidos. Tem, ao todo, dezessete temporadas e mais de 340 episódios desde sua estréia em 17 de Dezembro de 1989.
Surgiu inicialmente em 1987 como uma série de curtas de trinta segundos produzidos por Groening para a série de televisão “The Tracey Ullman Show.” A reação dos telespectadores foi tão positiva que "Os Simpsons" evoluiu para um programa, estreando como um especial de Natal de meia hora em 17 de dezembro de 1989, e depois como série regular em 14 de Janeiro de 1990. A série foi elogiada pela crítica e ganhou inúmeros prêmios, inclusive um prêmio Peabody, dezessete prêmios Emmy, doze prêmios Annie, três prêmios Genesis, sete prêmios International Monitor e quatro prêmios Environmental Media. Em 14 de janeiro de 2000, a série ganhou uma Estrela na Calçada da Fama em Hollywood. É visto em mais de cem países.
Altamente satírico, o seriado critica a sociedade estadunidense como um todo. Tem como alvos principais a classe média e a mediocridade americana. O canal de TV a cabo FOX, principal veiculador do desenho, também é motivo das piadas da série. O nome da cidade em que se passa o desenho, Springfield, foi escolhido por ser um nome comum de cidades americanas - todo estado tem a sua - o que garante uma crítica ainda mais abrangente ao modo de vida americano.
As autoridades são constante alvo da sátira ferina do desenho. Isto provavelmente explica a reação negativa do programa junto a movimentos conservadores. Esta reação foi mais forte nas primeiras temporadas de Simpsons, onde praticamente todas as figuras autoritárias que aparecem no programa são ridicularizadas.
A família
Homer Jay Simpson - o pai da família. Trabalha como inspetor de segurança em uma usina nuclear. Adora beber cerveja e comer rosquinhas açucaradas. É um alienado, patético, sem muita finalidade na vida e um completo ignorante. Mundialmente consagrado por seu bordão "D'oh!", utilizado quando faz alguma coisa errada sem querer.
"Marge" Simpson Bouvier - a mãe da família, uma típica dona-de-casa americana conservadora. Frequentemente serve como voz da razão nos episódios.
Bart Simpson - o filho mais velho, com 10 anos, um arruaceiro que adora andar de skate e atirar com estilingue. Costumeiramente se dá mal na escola e figura sempre como filho-problema.
Lisa Simpson - a filha do meio, é intelectual e vegetariana, toca saxofone e adora jazz. É adepta do budismo em oposição ao resto da família, que segue o cristianismo. Diferencia-se dos outros Simpsons, principalmente de Bart e Homer, por ser politicamente correta, inteligente, intelectual e com forte senso de justiça.
Maggie Simpson - a filha mais nova, de apenas um ano. Geralmente é ignorada pelo pai, mas não sai do colo da mãe.
Abraham Simpson - o avô, pai de Homer. Ex-veterano da Primeira e Segunda Guerra Mundial vive hoje no asilo e normalmente é desprezado e maltratado pelo filho.
Episódio “O ônibus” (15/02/1998)
Neste episódio, a trama central se dá em torno do acidente com o ônibus escolar, que após cair de uma ribanceira, fica a deriva no mar e leva as crianças a ficarem sozinhas em uma ilha deserta. As crianças estavam indo a um encontro escolar das nações, onde cada um deveria representar uma nação, e assim como nas reuniões da ONU.Previamente na sala de aula, o diretor da escola tenta ensaiar com seus alunos, como seria o evento; alguns momentos depois, uma provocação do aluno que representava o Japão a um colega que representava o México, uma discussão generalizada se inicia e transforma o ensaio em uma tremenda confusão, que se encerra com a advertência do diretor: “ Atenção! Vocês querem ser que nem a ONU, ou querem só fazer bagunça e perder tempo?”.
O papel ridículo atribuído à Organização das Nações Unidas de maneira irônica pelo diretor Skinner, se dá em um momento em que essa instituição desempenha um papel quase simbólico, visto seu enfraquecimento após a queda do muro de Berlim. A Primeira Guerra do Golfo já havia sido ratificada apesar da posição contraria da ONU. Anos mais tarde, a Organização seria totalmente ignorada em relação a sua posição contraria a Segunda Guerra do Golfo. As tomadas de decisões unilaterais por parte do governo americano em sua política econômica dos últimos três mandatos vêm demonstrando que sua força bélica vale mais do que qualquer congresso mundial.
Após o acidente, as crianças se encontram em uma ilha, aparentemente não habitada, e apesar do medo inicial, logo surge a figura de Bart, mostrando como seria boa a vida selvagem e livre, principalmente sem a presença de adultos. Surge então uma cena imaginada por Bart, de uma vida em comunidade, funcionando perfeitamente com abundancia de mantimentos sem o esforço do trabalho e as obrigações rotineiras. De acordo com suas palavras: “- Seremos como a família Robinson suíça, com direito a falar palavrão!”. Bart faz aí uma alusão a outro seriado da TV americana, Os Robinsons, que apesar de terem naufragado em uma ilha deserta, através de seu esforço e trabalho duro conseguiram reconstruir sua vida, dentro do american way of life.
O sonho da vida livre é substituído pelo fracasso da empreitada das crianças, pois a falta de alimentos os leva a entender quais seriam os princípios básicos para sua sobrevivência. Após a divisão dos últimos mantimentos encontrados por Bart no ônibus afundado, as crianças reservam parte dos alimentos para o dia seguinte, e ao acordar percebem que a comida havia sumido.
Ao invés de se preocupar em resolver o iminente problema da falta de alimentos, as crianças resolvem se organizar para determinar de quem havia sido a culpa pelo sumiço das ultimas provisões. É organizado então um tribunal, com júri, réu advogado e juiz, que mesmo sem provas irá atentar contra a aparente culpa do personagem Milhouse. Para a sociedade do espetáculo, a americana no caso tratado, é mais importante a produção de um sujeito culpado do que a real possibilidade de solução de determinado problema. Assim opera também a mídia, ou o quarto poder, como é chamado atualmente este meio de comunicação.
Lisa, sempre sagaz, observa então que um javali lambe o musgo das pedras e assim retira os nutrientes necessários à sua sobrevivência. Logicamente para Lisa, estaria resolvido o problema da fome, pois todos poderiam se alimentar do musgo. A cena é cortada e logo aparece o javali espetado e sendo assado em uma fogueira. Esta elipse nos leva a entender que mesmo com a garantia de sobrevivência através do musgo, aquela comunidade optou por matar o animal e se prover de sua carne, opção carnívora feita pela humanidade ao longo de seu desenvolvimento.
A necessidade de se alimentar teria feito com que as crianças aprendessem a viver em sociedade, demonstrando que todas as nações podem ser iguais, se suas necessidades forem iguais- a fome é linguagem universal- independente da pátria ela pode existir, o que nos iguala como humanos.
Paralelamente ao caso do naufrágio, a trama se completa com uma outra história, protagonizada por Homer. Após descobrir que seu vizinho abrira um negócio na internet, Homer se vê na obrigação de se equiparar ao seu vizinho, e ter também seu próprio negócio virtual. Ele monta um escritório improvisado, com a ajuda de Marge cria um nome pomposo para sua empresa, sem nunca mencionar qual o ramo de negócio sua empresa se dedica.
Na década de 90, a popularização da internet ainda se dava mais por meio da mídia do que por suas reais necessidades e utilidades no cotidiano das pessoas. A desmaterialização do capital, fenômeno intensificado em sua ultima fase é representada com humor no desenho, pois mesmo sem produto a ser vendido, ou serviço a ser oferecido, a falsa empresa virtual criada por Homer desperta interesse do mega empresário Bill Gates, o criador do Windows e papa de uma nova geração de capitalistas que fizeram suas fortunas por meio de empresas virtuais e produtos tecnológicos ligados ao novo mundo do trabalho.
Bill Gates aparece no episódio representado por ele mesmo, e vem com uma proposta para fechar a empresa de Homer. Acreditando ter feito um bom negócio, Homer concorda logo com o fechamento da falsa empresa, e se surpreende ao ver Bill Gates ordenar a seus capangas que destruíssem seu escritório, mesmo sem saber ao certo que tipo de empresa seria aquela. O personagem ironiza de maneira lógica:
“- Você acha que eu fiquei rico assinando cheques?”
A piada ilustra um ramo empresarial que apesar de super novo e moderno se apóia em práticas já tradicionais da economia para garantir o sucesso dos seus empreendimentos. Formação de cartel, monopólio e espionagem industrial foram algumas das acusações que Gates sofreu nos últimos anos e muitos são os processos que responde ao mesmo tempo em que sua fortuna sempre aumenta.
Tanto no infortúnio das crianças quanto no de Homer está impressa a idéia de que só se pode conseguir sucesso através do trabalho honesto e dedicado. A ética do trabalho, tão enraizada na ética protestante que colonizou os Estados Unidos aparece no desenho que apesar de toda sua roupagem crítica e contestadora, não esconde o contexto histórico estrutural a que está submetido.
Por mais que tente conferir uma subversividade, o desenho também está repleto de lições moralizantes, pois a partir do escárnio e de certas situações tratadas é que extraem a moral, ou fundamentalmente a visão de História que ali está se explicitando.
O estudo de documentos que não se propõe a tratar de História é importante, pois diversas vezes são vistos como ingênuos, ou ainda não históricos. Tal equívoco não deve ser cometido pelo historiador atento que deve levar em consideração os novos estudos e os novos documentos, uma vez que só podemos entender a sociedade através da sua problematização.
A análise de filmes, desenhos, jogos ou revistas em quadrinhos é da maior importância, pois dentro de cada documento reside uma visão de História a ser percebida a partir da prática de reflexões acerca da sociedade e sua historicidade.As diferentes filosofias da História contidas nos mais diferentes documentos faz com que o trabalho de investigação historiográfica e analise documental sejam encarados como um exercício de desvendar os conceitos –chave para o entendimento das praticas históricas e sociais, dentro de sua totalidade possível.