domingo, 4 de setembro de 2022

O Escriba e o legado da escrita no Antigo Egito


O Escriba, de Alessandro Roccati, que constitui o terceiro capítulo do trabalho organizado por Sérgio Donadoni, O Homem egípcio, obra que traz estudos de diversos especialistas, retrata a sociedade antiga do Egito a partir da análise de figuras humanas essenciais como o Sacerdote, o Escriba, o Faraó, entre outros.
O desafio é enorme se considerarmos que para o estudo de um período tão distante na cronologia, existam não mais do que fragmentos que procuramos, à luz dos debates atuais, interpretar e entender os aspectos únicos de uma sociedade hierarquizada e bastante organizada dentro dos seus próprios conceitos.
O Escriba será objeto de estudo de Roccati, com o objetivo de demarcar as características que diferenciavam esta categoria da dos indivíduos comuns, a fim de demonstrar a complexidade das relações sociais e políticas do período. Para isso será necessário definir quem era o Escriba, e quais eram suas funções e deveres dentro do sistema de classes e ao longo da passagem do tempo. Além disso, ele se dedica a aspectos de caráter pessoal e intelectual da figura do escriba em sua construção.

Alessandro Roccati, italiano, é graduado em Letras pela Universidade de Roma e com apenas 26 anos já obtivera especialização em Egiptologia em três importantes instituições, entre elas Oxford. Curiosamente seus primeiros trabalhos se iniciaram apenas após sua permanência de dois anos no serviço militar.
Sempre vinculado a museus, procura estudar os papiros, manuscritos, epígrafes, túmulos. Participa de escavações arqueológicas e publica diversos trabalhos dedicados à história da cultura egípcia antiga, sua literatura, seus elementos de linguagem e as características do seu cotidiano em diversos contextos históricos.


Se procurarmos na estrutura do texto fazer uma divisão a fim de facilitar seu entendimento, criaremos na verdade um problema. Apenas a separação necessária entre a introdução acerca do que se trata o estudo, os argumentos defendidos e a conclusão, é utilizada para garantir a fluência, coesão e unidade ao texto. A trajetória da figura do escriba é relatada em diversos momentos do Egito Antigo, destacando em cada período a sua significância e a sua relação com o poder. Isso nos leva a considerar que escrita então, torna-se objeto inseparável de um estudo que se propõe a tratar do Escriba.

Para um especialista em letras clássicas egípcias como Roccati, fica difícil não deixar transparecer em suas palavras, quase que uma apologia à escrita, e mostra como ela se difundiu, e foi utilizada dando exemplos que remetem aos 2º e 3º milênios.
A associação entre língua e escrita era necessária às práticas religiosas e rituais, que conferiam a alguns escribas um caráter quase mágico que o autor explica quando tenta definir o papel do que chama de sacerdote leitor. A leitura ritual, dos textos sagrados requeria a habilidade não só do conhecimento da escrita, mas principalmente a capacidade de interpretação dos signos, que em sua forma gráfica ou lingüística poderiam apresentar significados diferentes se não fossem lidos com destreza.



Se quisermos cometer um anacronismo, podemos comparar as dificuldades do sacerdote leitor ao interpretar os textos sagrados tão distantes no tempo com os problemas correntes da Arqueologia que através de poucos vestígios legados por tempos ainda mais distantes, tentam novas teorias e releituras em busca de equívocos, ou ao menos de novas possibilidades de entendermos aquelas escritas a partir das inovações e descobertas da Lingüística.
Apesar de a condição de escriba se considerada fator de diferenciação social em relação a homens que não liam ou escreviam, a classe estava sujeita a hierarquia interna que se formava de acordo com os níveis de conhecimento e de utilização da escrita. O autor cita como exemplo, os hieróglifos do túmulo de Djau, em Abidos (finais da 4º dinastia, aprox. 2200 a.C.), que revelam que Djau foi escriba dos rolos divinos e era chefe dos que escreviam actas regias, além de ser sacerdote leitor. Em tempos em que estado e religião se fundiam a busca do conhecimento era necessária para ascensão e participação ativa no processo.



De menor importância na hierarquia, mas participativos no funcionamento da sociedade estavam os escribas que apenas podiam ler os números, ou dominavam a escrita de maneira simples, necessária para contabilidade. O registro dos rendimentos propiciava o inventariado dos produtos, e principalmente a distribuição de recursos. A profissão de escriba passa então a ser ambicionada por permitir estar ao lado do corpo administrativo, seja econômico ou religioso, e aproxima o escriba das classes superiores, dos funcionários e sacerdotes, e certas vezes mesmo após sua morte teria garantido certo privilégio ao lado dos deuses.



Ao deixar de lado a questão das funções do escriba, o autor se interessa em trazer aspectos de caráter pessoal em sua construção da figura do escriba. Talvez nem todos gozassem de conhecimento e intelectualidade notável, a maioria talvez apenas reproduzisse mecanicamente os ensinamentos aprendidos. Mas interessa a Roccati a idéia de que cada vez mais o conhecimento trazia intelectualidade, e a escrita, e a leitura fecundariam o embrião que viria a formar a futura classe administrativa dominante de magistrados. Claro, guardadas as proporções de mobilidade social, era inevitável que o conhecimento da escrita era requisito mínimo e cada vez mais importante, se difundindo e multiplicando suas formas de maneiras diversas no longuíssimo tempo.

Podemos pensar a partir de uma passagem do texto, uma citação que segundo o autor vem confirmar um antigo conceito (...) de que a escrita é mais duradoura do que a pedra com que foram construídas as pirâmides e que por isso, quem a sabe utilizar está mais seguro do que as múmias que foram encerradas em suntuosos sepulcros. Devemos lembrar que apesar de sólida, a escrita que até hoje nos é fundamental não se apresenta em blocos, como os das pirâmides. A escrita, como a língua é orgânica e sofre diversas modificações de acordo com o contexto, a cultura e a própria passagem do tempo.
A importância da escrita, e sua transformação de instrumento do Estado a objeto de conhecimento pessoal do escriba, não configuram um deslocamento de sua função, mas talvez a busca de ascensão em uma sociedade marcada fortemente pelas desigualdades e pouca mobilidade. Alessandro Roccati, especialista em línguas, literatura, cultura tece suas teorias dentro de uma esfera acadêmica, fruto de uma sociedade em que a ascensão social é possível através da busca de conhecimento. A cultura da meritocracia pode ou não ser um reflexo dos tempos Antigos, afirmação que talvez jamais venhamos a confirmar, porém influencia a construção da imagem do escriba feita pelo autor no texto.

Dentro de uma sociedade que pretende ser funcional, onde cada figura tem o seu papel, a intenção do texto é mostrar que na antiguidade podemos encontrar subsídios para afirmar que o lugar dos intelectuais, daqueles que tem o conhecimento, é destacado do comum, e sempre está aliado ao poder. Deter o conhecimento nos dias de hoje é deter uma forma de poder sobre os demais, e como só podemos entender o passado a partir das formulações de hoje, não podemos tomar nenhuma construção como fiel, ou definitiva, seja do escriba, seja do funcionário.















Exemplo de papiro egípcio datado de mais de 5.000 anos