Este estudo da pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz tem como cenário o Segundo Reinado, época de D. Pedro II, monarca cuja figura já nos é tão conhecida por meio de inúmeras biografias, porém aqui o que se busca são os caminhos de construção do mito de Estado que se formou, seja em esfera oficial na figura do “rei que já era rei antes de nascer”, do “monarca tropical” ou do sábio imperador erudito portador de longas barbas que deveriam realçar sua maturidade e sabedoria mesmo na juventude, como também no imaginário popular, onde D. Pedro II era uma espécie de catalizador de desejos populares que se refletiam nas inúmeras festas do império, oficiais ou não, onde o monarca era sempre figura destacada, fosse ele o personagem principal ou mais um rei entre tantos outros que habitavam o imaginário dos extratos populares naquele período.
Mesmo a representação mais oficial de “monarca tropical”, “Luís XIV dos trópicos”, também é permeada por um repertório muito próprio de símbolos, que a autora tenta desvendar, analisando temas a princípio díspares, como a ritualística calcada na mais profunda tradição européia (porém sempre vinculada ao elemento tropical); a associação de fundo romântico com o índio para um projeto de na nação; a insistência em apresentar uma imagem civilizada (como nas feiras e exposições universais do séc. XIX), porém mesmo neste último caso, por mais que se tentasse fugir do tema, o que sobressaia aos olhos estrangeiros era nossa face exótica, de paraíso edênico, da qual o próprio imperador fazia parte, haja visto que ele próprio sentava na frente dos estandes brasileiros nestas feiras, já à época tentando incorporar o aspecto de “monarca cidadão”, elemento também estudado no livro. Tudo isto tendo em vista ser o Brasil um dos últimos países escravistas do mundo na segunda metade do séc. XIX, o que reforçava ainda mais nosso caráter, no mínimo, exótico.
A idéia, nas palavras da própria autora, é “recuperar meios e processos pelos quais toma forma uma grande representação de D. Pedro II e do Império brasileiro”. Para isto é importante o exame da iconografia e desta representação oficial do imperador, onde o próprio tema das “barbas” do jovem D. Pedro e outros símbolos pensados pela elite do período são cruciais para se analisar seu impacto junto aos elementos populares, que são quem efetivamente “consumirá” esta imagem que irá tornar-se “mítica” e “sagrada”, tendo o apogeu de sua representação nas já citadas festas e, à parte as festas oficiais e outras trazidas pelo colonizador português, são as festas da população de origem africana que possuem o destaque neste contexto.
Apesar da associação oficial com o índio, teorizada em muito por alguns intelectuais do IHGB, bancados por D. Pedro, não podemos esquecer de forma alguma a contribuição dos africanos para a jovem nação que se formava e é por meio destas festas que esta população dialogará com o Império, influenciando e sendo influenciada por este. Podemos dizer que o próprio D. Pedro II e a monarquia compactuaram com esta cultura, que como diz Schwarcz, “ao mesmo tempo em que se europeizou com sua presença, tornou-se mestiça, negra e indígena no convívio”, tornando-se ele um “monarca com muitas coroas”, pois nestas festas o elemento imaginário de fundo monárquico estava sempre presente, fosse nas cavalhadas ou no mito messiânico do sebastianismo (estes de fundo português), fosse nas congadas, festas do Divino, batuques, etc., onde o monarca brasileiro dialogava constantemente com outras “realezas”, inclusive reis africanos eleitos no Brasil, nas congadas, por exemplo.
Mesmo na representação oficial permeada pelo romantismo indigenista, este movimento de influência e re-influência contínua se faz presente, pois se da mesma forma que na literatura e na pintura os índios nunca foram tão brancos, o monarca e a cultura brasileira tornavam-se cada vez mais tropicais, em movimento análogo ao das festas já citados acima. Inclusive, não podemos deixar de citar que apesar da popularidade que a monarquia sempre gozou no Brasil, a figura do imperador começa a perder esta popularidade a partir do momento em que D. Pedro II abandona esta representação de “monarca tropical” e vai aos poucos deixando de lado o caráter “sagrado” e “divino” de sua realeza para assumir a pecha de “monarca cidadão”, com seu livro sempre a mão e a pose de erudito, mecenas do progresso, que tentava passar principalmente ao olhar estrangeiro, que no entanto, sempre deu mais atenção ao nosso lado exótico e ambíguo.
Portanto, ao mesmo tempo em que o Império influenciou e foi influenciado pelas culturas nativas e africanas no campo popular (em que as festas seriam o outro lado do manual de etiqueta da corte), também o foi no campo oficial, ao mesmo tempo “embranquecendo” e europeizando o índio, mas também assumindo uma representação sempre envolta de muitas frutas, animais e outros temas tropicais como o próprio indígena. Por outro lado, ao perder a pompa que ajudava a ligar o imperador à realeza sagrada e mistificada das festas e procissões, começou-se a perder a monarquia no Brasil. Porém, à parte as “maquinações das elites”, como frisa Schwarcz, a monarquia sobreviveu no campo do imaginário popular, em que hábitos de pensamento e mentalidades anteriores à vinda da corte re-traduziram e atualizaram D. Pedro sempre como o eterno monarca tropical.
Utilizando como fontes uma vasta iconografia e dados biográficos sobre D. Pedro II, além de material de época, Lilia Schwarcz aproveita também como documento um tipo de relato interessantíssimo, que é o dos viajantes estrangeiros, principalmente no que concerne às festas, onde acreditamos que esta visão estrangeira seja importante como um todo para tentarmos decifrar algumas das ambigüidades que tanto faziam parte do Brasil, a parte o preconceito destes viajantes, que vindo aqui para pesquisar a fauna e a flora, defrontavam-se com estranhos fenômenos dos homens, na cabeça deles.
Além da população biologicamente mestiçada, estes homens encontravam aqui também uma mestiçagem de costumes e religião, o que, principalmente na mente protestante e racionalista de muitos deles, constituía-se em um absurdo. Porém, mesmo entre estes relatos levantados por Schwarcz, identificamos muitas diferenças entre os autores. Henry Koster e Robert Avé-Lallemant parecem ter gostado da mulher negra e mulata. Já os famosos naturalistas alemães Spix e Martius, apesar da série de análises negativas, se mostravam otimistas em relação ao futuro do Brasil. Carl Seidler, que chegou ao Brasil sem muitas pretensões científicas ou intelectuais, mostra-se por demais preconceituoso.
Os reverendos protestantes Kidder e Fletcher constrangiam-se com a escravidão e a falta de decoro nas cerimônias religiosas, tendo todos eles vivido nas mais diferentes partes do Brasil. À parte suas diferentes motivações, podemos dizer que o fascínio pela natureza, a aversão à escravidão e a indignação contra os rituais religiosos miscigenados são uma constante nas análises de todos. De qualquer maneira, apesar do ranço muitas vezes preconceituoso e da distância com que estes estrangeiros observam o Brasil, é inegável que nestes relatos a nação surge pela primeira vez negra e mestiçada em sua cultura, apesar das tentativas da elite em esconder o elemento negro. Provavelmente, e a autora aponta isto no texto, nasce aqui a representação de nossa cultura popular como sendo mestiça, composta de brancos, negros e índios.
Partindo para uma época diferente, final dos anos 80 do séc. XIX, as análises do alemão Carl von Koseritz são extremamente interessantes para embasar um argumento de decadência da monarquia em comparação com os escritos de Fletcher, por exemplo, já que ambos tiveram a oportunidade de comentar as aparições públicas do imperador. Diz Schwarcz: “Enquanto este último não se cansava de exaltar o luxo e a pompa do palácio e dos cortejos reais, Koseritz traça um quadro caricatural e decadente da corte e de D. Pedro II (...) a distância de trinta anos entre os textos revelava marcas profundas na monarquia”. Entre estas duas visões é bem embasada a transição do monarca sacro e tropical para o monarca cidadão.
Sobre esta nova representação, é importante destacar o empenho pessoal do próprio imperador, que assumia uma postura de cada vez mais tentar veicular uma imagem “civilizada” a seu imenso império rural e escravocrata, inclusive bancando novidades como a fotografia e o telefone entre nós, além do empenho do governo brasileiro em sempre portar-se bem nas já citadas exposições universais, mais um projeto que levava a marca pessoal de incentivo do monarca, porém o que mais ressaltava a olhos estrangeiros era mais uma vez nosso caráter de país com maravilhosa natureza e “bons selvagens”.
No que tange à construção de uma imagem “mítica” ou “sagrada” do imperador, a análise que faz a autora com base na tese de “corpo sagrado” e “corpo político” que toma emprestada de Ernest Kantorowicz é de extrema relevância, pois este “corpo do rei” simbolizava as duas instâncias que viemos tratando desde o início, ou seja, a criação política e institucional da realeza de um lado e a figura mítica, marca do imaginário popular, de outro.
Além de Kantorowicz, Schwarcz utiliza-se fartamente de estudos clássicos anteriores a respeito da monarquia brasileira para construir sua argumentação, como os de José Murilo de Carvalho, Sérgio Buarque de Holanda e José Felipe de Alencastro, entre outros, além de dialogar com outros trabalhos clássicos no campo da sociologia ligada ao estudo de realezas, mais acentuadamente neste caso Norbert Elias, bastante empregado por ela.
Para encerrar, lembramos do resgate que faz a autora desde a morte do imperador (sua famosa barba, que o acompanhou durante a maioria de suas representações, tornava-se mais branca ainda no leito fúnebre, realçando ainda mais este símbolo) e os caminhos que a memória e, por que não, seu “corpo sagrado” toma na primeira república até sua redenção oficial na era Vargas, inclusive com o traslado dos corpos do casal real para Petrópolis, que tornaria-se assim definitivamente a “cidade de Pedro”. Portanto, a par de todos os temas estudados e analisados por Schwarcz, só podemos realmente encerrar com a frase de Mendes Fradique, que abre o livro: “Só uma coisa não fez o grande monarca durante todo o seu feliz reinado: foi a barba”.