Julgando ser desnecessário discorrer sobre o autor, é quase que obrigatório mencionarmos o fato absolutamente fabuloso de que Juan Rulfo escreveu apenas duas obras, sendo o romance Pedro Páramo (1955), e os contos de Chão em Chamas (1953), mas que foram suficientes para lhe concederem o mérito de ser considerado um dos mais importantes escritores latinos de todos os tempos, sendo diversas vezes objeto de estudo e sendo quase uma unanimidade no meio literário mundial.
A estrutura de sua narrativa, quase poética, consegue ser direta sem ser pobre e apaixonam o leitor no sentido de inseri-lo dentro do contexto narrado e se emocionar com as passagens. A influência da literatura russa do século XIX foi transferida para a obra de maneira única e não daria conta sozinha de ser a única responsável pela beleza do estilo inrotulavel criado por Rulfo. O autor considerado ícone do regionalismo mexicano utiliza-se do coloquialismo de seus personagens de forma a universalizar as situações descritas, e assim alcançar diversas mentalidades ao redor do mundo.
“Os miseráveis”
Apesar das conhecidas diferenças entre as regiões norte e sul do México, a pobreza dos camponeses em geral é presente em todos os contos e nos é apresentada de forma incrivelmente banal, o que pode nos levar a idéia de que somos nós quem concluímos esse conceito se baseando em um comportamento que se demonstra normatizado dentro de um ambiente escasso de recursos e pobre de esperanças.Mesmo não sendo evidenciada como nos exemplos que citaremos a seguir, quase em todos os contos a pobreza aparece de maneira sistemática, as vezes em menção a alguém muito magro, a um vilarejo deserto, ou mesmo a uma terra improdutiva, pobre de recursos minerais.
No primeiro conto, “E nos deram a terra”, a terra supostamente devoluta, no contexto da Revolução, é pobre, é seca, e segundo a narrativa: “a chapada não é coisa que sirva. Não há coelhos nem pássaros. Não há nada (...) tanta e tamanha terra para nada, (...) Porque nos deram esta crosta de terra seca e dura que nem pedra para a gente semear?”. (p.183). Inicia-se a construção de idéia de pobreza que passará por todo o livro.
No conto intitulado “É que somos muito pobres” é que percebemos de maneira contundente essa característica, porém em diversos outros encontramos passagens que nos remetem uma família descrita pelo autor: após uma enchente, essa família muito pobre perde seu único bem, uma vaca e seu bezerro, que serviriam ao menos de dote para o casamento de sua filha mais nova, visto que as duas mais velhas já haviam se entregado à prostituição. Diz a narrativa: “Segundo papai, elas tinham se perdido porque éramos muito pobres lá em casa e elas eram muito rebeldes”. p(208). A perda da vaca levaria a família a miséria total, e a filha mais nova também por necessidade, viria a se prostituir.A maneira banal como o escritor nos descreve a passagem final do conto nos dá a nítida noção de “normalidade” com a qual o narrador nos conta a derrocada de sua família, chegando a causar um certo mal estar.
A fome, conseqüência da pobreza também é constante, como por exemplo, no conto “O homem”, quando a personagem não se assusta ao assistir a fome de um fugitivo: “Chegou-se na mais gorda das minhas borregas e com suas mãos feito tenazes agarrou-as pelas patas e sorveu seu mamilo. Daqui dava pra ouvir os balidos do animal; mas ele não soltava, continuava chupa que chupa até se fartar de mamar”. (pág.222).
Mais uma menção à fome é feita no conto “Passo do Norte”, quando o personagem abandona sua família em busca de melhores condições ao norte do país, que apesar de estar participando do processo pré-revolucionário, apresentava um forte contraste de condições, devido a sua industrialização em oposição a total ruralização do sul. Diz o homem: “Semana passada não conseguimos nem ganhar pra comer, e na antepassada só comemos daquele matinho chamado bredo. Tá todo mundo com fome, pai; o senhor nem passa perto disso, porque vive bem”. (p.325). Fica evidente a pobreza, alem da contradição social, visto que o pai ao que parece não passa fome.
Segundo sabemos, a revolução contou com participação direta das camadas populares, as camadas mais baixas da população, los de abajo, como definiu Azuela, e em Chão em chamas, o reflexo disto está presente quando o autor nos transporta para dentro da situação miserável que conclama uma mudança urgente, uma revolta se instala na consciência do leitor que acompanha os contos. A miséria, como fator social leva de algum modo a uma espécie de consciente coletivo, de pessoas que sofrem do mesmo mal e que se unem em busca de uma transformação, uma justiça social. Indígenas e camponeses se unem a operários para reivindicar cada um a sua maneira, o fim dessa miséria em comum.
Esse fenômeno cria uma imagem de pobreza que se concretiza em diversos meios culturais alem da literatura. No conto “Luvina”, é descrito este local muito triste, onde um homem que lá viveu tenta convencer um outro que lá precisa chegar que essa atitude o levará ao inferno. A pobreza de Luvina está na falta de esperança que o lugar representa no conto. “Luvina é um lugar muito triste. (...) Um lugar moribundo onde morreram ate os cães e já não há nem quem ladre para o silencio” (p.312).
Em foto de Augustin Victor Casasola (fig. 1), tomada no norte agrário do México por volta de 1910, podemos ver uma cena de cotidiano camponês onde é impossível não percebermos a imagem da pobreza, ao menos a humildade, da tristeza da foto, alem do contraste e da fisionomia, tanto da criança, quanto da idosa nos transmitem um ar de pena. O chão de terra traz um ar de precariedade, de falta de recursos, de simplicidade. A imagem ilustra a paisagem de Luvina, descrita por rulfo, onde a tristeza impera, a falta de esperança é presente. Diz a narrativa: “Porque em Luvina só moram os velhos muito velhos e os que ainda não nasceram, como se diz (...) E mulheres sem forças, quase travadas de tão magras”. (p.310).
O diálogo entre a foto de Casasola e o conto de Rulfo, reforça a imagem da Revolução que por sua vez teve em Azuela talvez sua primeira representação. Rulfo ajuda a concretizar a representação do real que antes havia sido feita tanto pelo novelista quanto pelo fotografo. Portanto, novamente a revolução é representada com participação popular, por sua vez pobre e necessitada de mudanças urgentes.
Podemos com alguma liberdade, porém com muita cautela fazer um paralelo entre a pobreza mexicana com a pobreza francesa, na obra prima “Os miseráveis” de Victor Hugo, que de certa forma ajudou a construir e concretizar uma imagem que viria a ser justificada na Revolução Francesa, com a ascensão das classes populares, que clamavam pelo pão e por melhores condições de vida, miseráveis que chegavam ao máximo de tensão social, a ponto de revolucionar o quadro antes considerado permanente.
Como a pobreza e a miséria eram freqüentes na sociedade, era de se imaginar que a morte ocupava lugar não menos banal nas questões cotidianas pré-revolução no México. É sabido que culturalmente, os mexicanos sempre estabeleceram com a morte uma relação senão de celebração, ao menos de respeito e certa admiração pela morte, fazendo uma clara referencia às civilizações pré-colombianas que habitavam os planaltos mexicanos, e que praticavam rituais em oferendas aos deuses a fim de obter boas colheitas. A morte também é representada no período da Revolução pelas magníficas gravuras de Jose Luis Posada, que nos foram apresentas pelo Professor Julio em sala de aula, onde caveiras são estilizadas e representam os lideres da revolução, assim como a oposição representada pelos federais.
Sendo assim, as passagens que se referem à morte são varias no decorrer de Chão em Chamas, aparecendo em diversos contos como, por exemplo, em “A colina das Comadres”, que a todo o momento referenciam aos Irmãos Torricos, personagens mortos pelo narrador. A morte, quase uma questão de honra, deveria ser digna, assim como a necessidade de matar se mostrava às vezes inevitável. No conto que dá nome ao livro, “Chão em Chamas” em uma ação revolucionária contra o governo, um descarrilamento de trem deixa inúmeros mortos, o que teria “bicado a crista do governo (...) juntaram os corpos com pás e os faziam rolar como troncos até o fundo do barranco, e quando o montão ficava grande, empapavam tudo com petróleo e tocavam fogo” (pág.279).
Em “Diga que não me matem”, um personagem ao ameaçar o outro diz: ”sua nora e seus netos vão sentir sua falta (...) irão olhar sua cara e vão achar que não é você. Vão pensar que você foi comido por um coiote, quando virem essa sua cara tão cheia de furos de tantos tiros de misericórdia que deram em você”(pág.297).Mais uma vez a morte aparece, e dessa vez é anunciada.Já em outro momento, no conto intitulado “A herança de Matilde Arcangel”, a personagem que cai de um cavalo é enterrada e tem sua agonia descrita minuciosamente pelo narrador:sua carne já estava começando a secar, convertendo-se em casca por causa de todo o suco que tinha saído dela durante o tempo inteiro que a desgraça durou.(...).Alem do estilo inconfundível com que Rulfo ilustra a passagem, fica novamente presente a morte em seus contos.
Podemos concluir a partir destas duas breves analises, que a imagem construída por Mariano Azuela em suas novelas é de certa forma retomada em Chão em Chamas por Juan Rulfo. Ressalto, de certa forma, pois se trata de um estilo diferente, em uma linguagem próxima, porém com uma diferente organização e estética, mas ainda assim constroem cada uma a seu modo, assim como também a fotografia, a imagem que ainda nos dias de hoje nos é trazida:morte, miséria, pobreza, falta de esperança, sentimentos que viriam a ser a base da revolução e que seriam substituídos por uma nova ordem possível, com reforma agrária e maior participação popular.
O desencadeamento da Revolução infelizmente não se deu de forma tão simplista, talvez isso seja uma das características mais marcantes da Historia, o fato de que nada é absolutamente previsível, e todas as estratégias e planos de guerra podem ser bem ou mal sucedidos. Certamente outras obras, sejam romances ou novelas, sejam livros de História podem nos ajudar a perceber como se deu a formação dessa imagem, e como ela serviu também para afirmação de um povo através de sua cultura, que de tão rica contava com diversos meios para se integrar a fim de se criar também a nacionalidade mexicana, sempre retomada quando se trata de reconhecer os ideais que obtiveram sucesso na luta.
A fabulosa obra de Juan Rulfo nos oferece então uma infinita e deliciosa fonte de possibilidades de se enxergar as imagens do cotidiano mexicano de inicio do século XX, e nos transporta de maneira assustadora para aquele ambiente tão hostil e precário, em contradição com a elite que seria responsável por aquela situação. Este trabalho procurou brevemente chamar a atenção para o caráter multi-cultural, de diversas representações artísticas que nos ajudaram a enxergar construções acerca do cotidiano do povo mexicano.