sexta-feira, 1 de julho de 2016

Fotografia e construção de imagens no Império Brasileiro.

Por Jessé A. Chahad

Apesar do debate sobre a invenção da fotografia, que é atribuída ao francês Louis Daguerre em janeiro de 1839, no Brasil temos a presença do pintor Hercules Florence que no Oeste paulista, na Campinas no ano de 1833 já havia conseguido desenvolver a fotografia através de técnica própria, objeto de estudo do historiador Boris Kossoy. Em 1839, ela chegava à corte, pelas mãos do Abade Louis Compte, recém chegado de uma de suas viagens pelo mundo e em um período de 40 anos se proliferou de maneira que o Rio de Janeiro fosse uma das capitais do mundo que apresentava um grande número de estúdios fotográficos, quase sempre de formação estrangeira. A própria família real dava muita importância às fotografias, devido ao grande número de fotos do período ainda existentes.
Inicialmente tida como artefato de luxo, pela própria escassez e dificuldade que representavam a daguerreotipia, as inovações representadas pela descoberta do processo conhecido como calotipia proporcionava a reprodução de diversas cópias a partir de um mesmo negativo em 1850. A partir de 1860, a aplicação de colódio úmido baixava consideravelmente o custo de produção da fotografia e popularizava o hábito[1] principalmente através dos carte de visite[2]. A alta taxa de analfabetismo do período forma uma camada da sociedade carente de informação visual, e com potencial para a prática insurgente da propaganda política e publicidade comercial, a imagem impressa alcança sua maioridade[3].
A fotografia como documento histórico é uma fonte importante de pesquisa e sua presença em grande número no Império levou diversos historiadores a buscar nas imagens elementos construtores de sua significação histórica e social, na tentativa de reconstruir o período com fidelidade. A fotografia enquanto representação do real, muitas vezes assume caráter de documentação oficial. Esse fato apenas reforça a tese de que a fotografia pode ser utilizada para a construção de um uma interpretação da realidade e ainda mais: o seu caráter realista, proveniente da relação entre o momento real e a representação, aliado ao caráter de oficialização acaba quase por determinar que contra as fotografias não existam argumentos possíveis de dubiedade.
São com essas representações que devemos ser cautelosos e recorrermos aos documentos fotográficos como fontes passíveis de algumas diferentes interpretações, além de ressaltar que toda fotografia enquanto produto cultural é trabalho de um fotógrafo, o qual também está inserido em um contexto particular e serve a um propósito ora pessoal, ora pré-determinado por alguma ideologia, ou motivação profissional. Weinstein & Booth são citados por Boris Kossoy em seu livro Fotografia e História, e aqui retomamos sua premissa para este trabaho: “perceber na imagem o que esta nas entrelinhas, assim como o fazemos em relação aos textos”, “precisamos aprender a esmiuçar as fotografias criticamente, interrogativamente e especulativamente (...)” [4].
Os costumes importados se impõem, e estão presentes nas imagens representadas pelo vestuário, e pelo caráter cênico demonstrado pela análise do cenário. As famílias em geral procuravam ser retratadas com toda pompa exigida pela pequena ética dos costumes burgueses europeus. Um livro dá um ar de intelectualidade, já a pena o faz um escritor. A coruja simboliza a sapiência, o cão fidelidade. As armas o poder. Esses símbolos laicos de dominação eram partes do estilo pictorialista dos retratos, herança das pinturas renascentistas. Esses retratos, que às vezes eram reverenciados como se os retratados estivessem presentes nas datas de comemoração e patriotismos chegavam ao povo através da fotografia. Democratizava de certe forma a oportunidade de se ter a fisionomia fixada no papel, como a dos reis, bispos deputados, dos ricos[5].
Miriam Moreira Leite afirma que apesar de as fotografias não revelarem com certeza a camada social a qual pertencem os retratados, a publicação das fotografias em periódicos dos chamados membros ilustres das comunidades vem a sublinhar uma posição social herdada ou adquirida e deixam transparecer aos olhos atentos o estilo representativo do período e sociedade em questão[6].No nosso caso que buscava parecer Europa.
Os escravos domésticos eram por vezes enfeitados e demonstrados com orgulho por seus senhores[7]. Paradoxalmente, modernidade versus arcaísmo. A presença do vestuário europeu, e costumes como uso de cachimbos e charutos exibidos com pompa e circunstância foram analisados por diversos autores e vem a reafirmar a tese que a europeização dos costumes levaria ao desenvolvimento de uma civilização nos moldes necessários à modernidade e convivia com o sistema escravista atrasado e racista, como um entrave a modernização.
Citando exemplo, alguns hábitos estudados por Luis Felipe de Alencastro[8] como o uso de mucamas ou amas de leite para amamentar os filhos da burguesia mostra um outro lado. Os retratos de amas de leite que conhecemos apresentam tão somente a imagem positiva do relacionamento afetivo da ama, com suas vestimentas européias e o bebê branco no colo. Mas a professora Miriam Moreira Leite nos mostra que: além da mortalidade infantil provocada pelas precárias condições sanitárias do Rio de Janeiro no século XIX, a prática da amamentação por escravas alugadas a particulares ou asilos de crianças abandonadas (...) além de privar os filhos de seu leite, as amas eram exploradas fisicamente ao máximo, tanto quando eram alugadas a instituições para amamentar diversas crianças, como pelo período prolongado que se exigia que se aleitassem[9].Esse aspecto revela o peso da escravidão na sociedade do século XIX e marca nitidamente o caráter civilizatório em contradição na nação tropical.
Os retratos também vinham acompanhados de dedicatórias e o verso das imagens também oferece elementos interessantes que revelam a construção de uma auto imagem de classe. As inscrições identificam personagens, desmentem anotações anteriores, criam genealogias.Para a elite cafeicultora, parece, a marca de um dos fotógrafos famosos no verso da foto funcionava como distintivo de diferenciação social.[10]
[1] Boris KOSSOY, Origens e expansão da fotografia no Brasil, p.38.

[2] Os carte de visite eram carões de visita distribuídos aos amigos e parentes, como lembrança e foram bastante populares, devido ao seu baixo custo de reprodução. A proliferação da mania deixou como legado uma enorme fonte de para estudarmos os costumes da sociedade da época.

[3] Annateresa FABRIS. Fotografia. Usos e funções no séc. XIX, p.12.

[4] Boris KOSSOY, Fotografia e História p.79.

[5] Carlos A. C. LEMOS, Ambientação ilusória. In Retratos quase inocentes, p.53.

[6] Miriam Moreira LEITE, Retratos de família, p.178.

[7] Kátia M. de Queirós MATTOSO, A opulência na província da Bahia, in: A História da vida privada no Brasil, p.166.

[8] Luis Felipe de ALENCASTRO. Vida privada e ordem privada no Império, in: A História da vida privada no Brasil, p.60.

[9] Miriam de Moreira LEITE, A Família. Século XIX. In. Retratos de família, p.70.

[10] Ana Maria MAUAD, Imagem e auto imagem no Império, in. História da vida privada no Brasil, p.225.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Inquisição em Portugal

                                                                                                                                                                       Por Jessé A. Chahad

Para combater as heresias que se erguiam frente aos dogmas católicos, o papa Gregório IX criou em 1231 os Tribunais do Sato Oficio da Inquisição, cuja função era identificar e excluir da sociedade possíveis elementos desagregadores e contestadores da ordem cristã, assim como garantir o seu funcionamento. Os julgados e condenados pela Inquisição eram entregues às autoridades administrativas do Estado, que se encarregavam da das sentenças. As penas variavam desde confisco de bens até a morte em fogueiras, onde vigorava o braço secular, na execução dos condenados pelo próprio povo.

O interrogatório era marcado pela tortura, instrumento de terror muito comum na época, mas não livre de contradições.O Manual dos Inquisidores, espécie de guia pratico do oficio inquisitorial, escrito em 1376 pelo dominicano espanhol Nicolau Eymerich, depois revisto e atualizado em 1578 por Francisco de La Peña, reza que: “A finalidade da tortura é obrigar o suspeito a confessar a culpa que cala. Pode se qualificar de sanguinários todos esses juizes de hoje, que recorrem tão facilmente à tortura, sem tentar, através de outros meios, completar a investigação. Esses juizes sanguinários impõem torturas a tal ponto que matam os réus, ou os deixam com membros fraturados, doentes para sempre. O inquisidor deve ter em mente que o acusado deve ser torturado de tal forma que saia saudável para ser libertado ou executado”.

A Inquisição em Portugal foi instaurada a pedido do próprio rei D.João III em 1536, e compreende um mistério historiográfico dos mais obscuros e paradoxais até hoje, pois D.João III sabemos financiava estudos em outros países e incentivava as pesquisas de campo,( o que demonstraria o interesse por novas idéias) mas para uma maior centralização de seu poder teria optado pela adoção da inquisição, que insistia em afirmar os preceitos da escolástica,que pregava o saber Aristotélico, baseado em comentar obras tidas como referenciais e incontestáveis.A Inquisição agiu durante 285 anos em Portugal, sendo eliminada apenas em 1821.

Assim sendo, fica claramente declarado o poder de controle moral e de comportamento que representavam a Igreja e a Inquisição,que através do medo e do terror muitas vezes conseguia inventar culpados, pois além de sustentar sua própria estrutura com os tributos e confiscos, precisava conquistar territórios e reafirmar os dogmas católicos abalados pelas idéias surgidas com as novas interpretações da bíblia feitas na Europa na chamada Reforma Religiosa.

Porém devemos aqui apontar a diferença existente entre a Inquisição que de uma forma geral agiu sobre Itália, França e Alemanha e as Inquisições portuguesa e espanhola. Estas últimas especializaram–se em perseguir os chamados cristãos-novos, que eram judeus convertidos muitas vezes apenas para escapar das condenações, e eram perseguidos por continuarem praticando costumes judeus e ainda judaizantes, (os chamados marranos) o que era considerado não só uma heresia, mas uma possível ameaça representada pelo crescimento da burguesia que queria sempre ascender à nobreza.O poder estatal e o poder papal configuravam uma aliança de forte poder sobre a sociedade da época, o que fortalecia mutuamente a Igreja e a Coroa. Se em um primeiro momento a Inquisição se preocupava exclusivamente com os cristãos que desobedeciam as regras da Igreja, de maneira tardia em Portugal essa preocupação se estendeu a esses convertidos à força, e seus descendentes de maneira mais branda.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Formação da identidade : Relatos de viagem

                                             

Por Jessé A. Chahad


    O trabalho da professora Stella Maris se ocupou em inovar o modelo de estudo dos relatos de viagens, tipo literário narrativo muito comum no século XIX, porem que tinha sua esfera reduzida sempre ao universo masculino, e ainda carregava uma certa predominância de relatos produzidos por europeus em visita aos paises ditos “ exóticos” .Desta feita, serão invertidos os conceitos de formação de imagem do “ outro” , assim como a tradicional dicotomia entre “civilização e barbárie”.Podemos dizer que uma nova abordagem acerca das literaturas de viagem, que deixariam o status de “ fonte fidedigna” e passaria para a História das representações, procurando analisar a forma em que o relato é produzido,o que certamente vai além dos fatos narrados.
Sendo assim será travado um dialogo entre a alteridade, que é a relação com o “outro” relatado, e a identidade formada a partir dos relatos, ou seja, como a visão sobre o “outro” diz algo sobre quem está escrevendo o relato.
Três escritoras pertencentes a elite latino americana do séc. XIX, serão analisadas no trabalho, a brasileira Nizia Floresta, a argentina Euarda Mansilla e a cubana Gertrudis Gómez de Avallaneda , todas em seus relatos sobre viagens feitas à Europa e aos Estados Unidos.Esse fato viria também a romper com a tradicional literatura feita pelos viajantes dos séc. XVI a XVIII
Pode se dizer que apenas em Nizia Floresta teve um enraizamento maior em sua terra de origem, pois sempre relata a natureza brasileira como maravilhosa e exótica no bom sentido, e não no sentido incivilizado ou selvagem. Esse olhar de Nizia procurava valorizar e enaltecer a natureza brasileira frente a visão estética européia.Nas outras autoras, encontramos quando não uma duvida na questão da identidade, quanto uma apropriação do ideal europeu, sendo esse um dilema presente em Avellaneda.
Apesar do recorte sugerido pela autora na seleção das escritoras, essas não encontram muitas semelhanças entre si, além do fato der serem mulheres contemporâneas da mesma época. Essas diferenças e peculiaridades serão tratadas de forma atenciosa ao longo do texto, o que pode inserir o trabalho na área da História da vida privada, ou se preferir, história dos costumes e diferentes culturas. A própria noção do papel da mulher na sociedade não será uniforme, e Stella Maris vai atribuir a cada uma o seu passado e criação, a fim de demonstrar como se deu a formação e desenvolvimento dessas escritoras, e sua relação com o mundo em que viviam. A mulher não será vista como uma categoria homogênea, portanto não existirão pressupostos que indiquem padrões de comportamento a serem seguidos, nem ditos preceitos sexuais biológicos.
Uma das características que possivelmente pode unir as escritoras foi o fato de terem se dedicado em suas obras a retratar o papel das minorias marginalizadas, ou seja, as mulheres, os escravos, os negros ou mulatos. Isso demonstra certa sensibilidade por parte das escritoras em relação ao mundo socialmente desigual, e procuravam expressar seus sentimentos, sendo que as mulheres não tinham tanta liberdade para opinar decisivamente em assuntos do universo considerado masculino, apesar de autora recusar o conceito de gênero feminino e masculino separados em esferas intercambiáveis excludentes,essa marca era presente e o papel da mulher na sociedade acabava por ser secundário.
Para discutir a relação entre o viajante e o “outro”, Stella Maris se valerá do clássico trabalho de Tzvetzn Todorov, A conquista da América. A questão do Outro, que traz a idéia da troca ou cooptação de valores diferentes oriundos das relações entre dominador e dominado, ou ainda podemos entender como um relativismo, pois para o autor não estaria ausente em relações de alteridade um certo julgamento, provavelmente ocasionado pelo sentimento de superioridade.
Stella Maris relata uma anedota de Lucio Mansilla em visita a Paris, teria sido tido como índio, um ato de barbárie dos franceses, que ignoravam toda cultura latino-americana. Essa “inversão de valores”, onde o europeu é visto como “ bárbaros” serve como empirismo para demonstrar a teoria de que a noção de civilização ou barbárie depende apenas do ponto de vista relativizado do que pode ser civilização, e consequentemente do que se pode ter como conceito de barbárie.
A autora ainda afirma ter encontrado no percurso da pesquisa outras escritoras cubanas, uma que viveria na Espanha e escrevia sobre Cuba. Por falta de tempo, não teriam sido incluídas na pesquisa. Essa lacuna apontada pela autora demonstra que esse material se carrega de uma potencialidade, e em futuros estudos deverão receber atenção.
O choque cultural resultante do processo colonial provocou tanto nos relatos europeus quanto nos relatos latino-americanos uma transculturação, que é marcante nos discursos, portanto ao analisar as características desses relatos a autora procura identificar pontos de vista diferentes, oriundos da origem de quem relata, ou de certa forma, do próprio reconhecimento das diferenças inerentes de quem é relatado, e a possível identificação, porem sem ausência de julgamento, pois esse sentimento seria assim representado como diferença muitas vezes hierarquizante.
É muito importante que trabalhos como o da professora Stella Maris venham dar luz à mudança de concepção acerca da visão eurocêntrica sobre a América Latina e todo os conceitos pré-estabelecidos que foram enraizados na produção dos estudos sobre a assunto, e também no imaginário comum. A nova perspectiva serve como defesa ao estatuto do respeito as diferenças, sejam elas de ordem étnica, ou sócias, e serve como reforço a idéia de que o ponto de vista da analise, ou do relato sempre vem carregada de características ditas locais, independente do padrão estabelecido, mesmo que seja um padrão fortemente marcado pela questão de desenvolvimento e progresso, de ordem técnica e econômica e de ordem moral, criadoras de um modelo excludente e preconceituoso que hoje é combatido e condenável.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Raízes do Brasil

Por Jessé A. Chahad

Raízes do Brasil é uma obra importante, pois demarca uma transição na forma do autor estudar a formação do Brasil. Segundo Evaldo Cabral de Mello, Sérgio Buarque “abandonou o projeto de interpretação sociológica do passado brasileiro em favor de uma analise de cunho eminentemente histórico, em que soube ademais, evitar os escolhos do monografismo universitário ou meramente erudito, que é muitas vezes seu incontornável preço”.(p.189)
Sendo assim, é uma obra importante não só para o estudo sociológico, mas é definitivamente uma opinião das mais aceitas, discutidas, analisadas e combatidas na história da formação da sociedade brasileira que abriu caminhos para o autor se aprofundar em obras como Caminhos e Fronteiras, Visão do Paraíso e Do Império a Republica, consideradas frutos da fase de maturidade do autor.
Raízes representa um rompimento com a chamada “sociologia da formação brasileira” criada por autores como Oliveira Viana e Manuel Bonfim e ultrapassada do ponto de vista do pensamento sociológico da época. O discurso de tom sociológico cede lugar à solidificação do discurso historiográfico, agora não mais unicamente preocupado em reconhecer a gênese dos problemas da formação social brasileira, mas sim de um estudo a partir de tópicos claramente definidos em seus conceitos.
Porém, lembremos que o Brasil contemporâneo de Sérgio Buarque é o da geração de 30, e, portanto nos dias de hoje devemos ler e analisar a obra com cuidado para que não cometamos anacronismos que dificultariam o entendimento da importância que tal obra traz para o estudo da historia do nosso país, e elaborar idéias a partir de possíveis lacunas, fazendo evoluir o processo historiográfico.
O autor inicia sua obra em busca da identidade nacional, a partir da forçosa tentativa de implantação da cultura européia em um território naturalmente adverso e inteiramente diferente.
No primeiro capitulo Sérgio Buarque trata do pioneirismo ibérico em relação às conquistas no ultramar e das conseqüências desse feito exercido por uma sociedade hierarquicamente dividida em privilégios. O autor também critica o personalismo exagerado (que não tolera compromissos) e suas conseqüências e procura no que ele chama de falta de coesão em nossa vida social responsabilizar o tipo de colonização realizada pelos portugueses em especial comparados à América inglesa e espanhola, dizendo ser esta uma colonização de mera exploração realizada por uma nação de mentalidade nobre e ociosa.
Sérgio Buarque critica a mentalidade tradicional da sociedade de privilégios, e atribui a aversão ao trabalho manual e mecânico a responsabilidade pela exploração indiscriminada da colônia ao invés da preferência pelo seu desenvolvimento.Através da obediência aos dogmas católicos se ofuscou a liberdade de pensamento que viria a desenvolver um pensamento crítico moderno.A ausência de uma moral do trabalho era fator prejudicial à sociedade ibérica, de acordo com a teoria de Sérgio Buarque que utiliza os princípios de weber para comparar as nações católicas com as novas nações protestantes.
Para o autor, apesar do pioneirismo ibérico nos descobrimentos e sua participação na formação do pensamento moderno, o atraso representado pelas tradições tanto nobiliárquicas quanto católicas prejudicaram o desenvolvimento da colônia como conseqüência de um atraso da própria metrópole.
Na segunda parte, o autor faz uma distinção entre dois tipos de personalidades, os trabalhadores e os aventureiros, aonde nesse último aspecto se encaixa o perfil do colonizador português.Segundo Sérgio Buarque, o fato de ser o português um povo voltado às aventuras que aqui representavam os descobrimentos, estavam mais interessados nas conquistas propriamente ditas do que nos frutos em forma de trabalho que a colônia viria a oferecer.O espírito de aventura pode ter beneficiado o português que se adaptou melhor aos trópicos, em oposição ao holandês, por exemplo, cujo autor aponta o malogro, porém a adversidade ao trabalho somada às necessidades de uma sociedade rural estabelecida foi fator primordial para a introdução do trabalho escravo nas lavouras, o que confirmava a ausência de um pensamento progressista em relação ao verdadeiro desenvolvimento tanto da metrópole quanto da colônia.Essa comparação é feita pelo autor com as colônias da América inglesa, e parece querer justificar a implantação do sistema escravista, como sendo “única opção”.
O orgulho de raça é inexistente no povo português, que segundo Sérgio Buarque é um povo mestiço, e já na altura do descobrimento se encontrava miscigenado não só aos árabes, mas também com escravos negros, que na metrópole desenvolviam trabalhos domésticos.Assim, o autor procura minimizar o racismo, lembrando ainda que o governo português chegou a estimular o casamento com o gentio, a fim de melhor se misturar à raça indígena.
É ainda nesse capitulo que o autor vai dar mais ênfase aos prejuízos causados pela adoção do trabalho escravo e suas conseqüências.A ausência de cooperativas foi uma conseqüência, e a pratica conhecida como mutirão teria sido herdada dos índios, pois os portugueses não tinham a noção coletiva de grupo, ou de solidariedade.Outra conseqüência foi o baixo desenvolvimento de trabalhadores de oficio, ou especialistas.Por isso, o autor afirma (p49) que “o português vinha buscar era, sem duvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho”.
Sérgio Buarque de Holanda também vai citar as invasões holandesas e divagar sobre o que teria acontecido não fosse o malogro de suas expedições, este segundo o autor estava intimamente ligado à incapacidade holandesa de se misturar ao gentio, alem da dificuldade da língua.Essa característica de o português “tornar –se negro” vai servir de justificativa para o autor construir o mito do brasileiro como “homem cordial”, que será tratado em adiante capítulo.Em nota ao segundo capitulo, Sérgio Buarque vai relatar a ineficiência do arado em solo brasileiro relatada por um observador norte-americano nas duas ultimas décadas da monarquia brasileira, o que significa uma persistência da lavoura de tipo predatório.
Neste terceiro capítulo Sérgio Buarque trata da intensa ruralização que marcou definitivamente o desenvolvimento do Brasil. Para isto, critica a presença da escravidão e afirma que sua decadência deflagra a crise do sistema rural, tamanha era a sua dependência.
O ruralismo extremo criava uma espécie de autarquia econômica e conseqüentemente social, que o autor polariza com o desenvolvimento paralelo das cidades. A predominância daquela sobre esta indica um domínio da sociedade rural sobre a urbana, marcando ainda mais o subdesenvolvimento da sociedade em geral.De acordo com Antonio Candido, a fazenda se vinculava a uma idéia de nobreza e era o centro das atividades, secundarizando as cidades.
A essa herança rural também se somava um atraso em relação às técnicas utilizadas para o desenvolvimento da agricultura.A utilização da enxada no lugar do arado e a não utilização do bagaço da cana como combustível eram marca da administração apenas preocupada em usufruir a terra e não em desenvolve-la, aumentando a produção.
O trabalho escravo também representava um entrave ao desenvolvimento do capitalismo moderno, que só começou a se amenizar com as leis impostas pela Inglaterra criminalizando o trafico negreiro.Essa mudança apesar de lenta propiciou uma injeção de capital no mercado comercial, não porque os escravos passariam ser consumidores, e sim devido ao grande fluxo de recursos que outrora era empregado no trafico agora procurava tardiamente as bases de desenvolvimento de uma modernização em diversos setores.
À aparente prosperidade corria paralelamente a instabilidade que consistia na tentativa forçada de modernização, que importava valores e comportamentos pouco adequados à índole do colonizador e que transpassava a colônia.Os ideais liberais e burgueses encontravam resistência em uma sociedade paternalista tradicional, a qual estava acostumada às relações servis e impessoais, apenas de cunho aparente e superficial.
O autor encerra o capítulo decretando que a herança ruralista não foi uma imposição do meio e sim um esforço do colonizador, este preocupado em fortalecer apenas a metrópole, e abandonando a cidade em preferência ao campo.
A importância da cidade é retomada no quarto capítulo para agora evidenciar uma importante comparação que Sérgio Buarque irá fazer entre o português e o espanhol.Ao espanhol chamado de ladrilhador interessou mais o interior, talvez pelo precoce descobrimento de metais precioso, o que levou à fixação de cidades em detrimento das fazendas portuguesas que se atrelavam ao litoral e se espalhavam verticalmente pela colônia, sendo assim semeadores.A fundação das cidades teria sido um esforço da administração colonial, como um instrumento de centralização do poder, uma tentativa de tornar mais presente as autoridades, por via de aumento da quantidade de impostos, por exemplo.(p.103)
Segue agora um dos pontos mais importantes do livro, onde o autor associa a imagem do aventureiro (colonizador português) o desejo de enriquecimento rápido e sem esforço, novamente remetendo a Max Weber, para culpar burguesia portuguesa ociosa devido à facilidade de ascensão social por meio de aquisição de títulos. Isso teria impedido a burguesia de desenvolver ideais próprios e conseqüentemente chegar realmente ao poder.
A oposição também se dá no que diz respeito à característica marinha que marcou a colonização, estabelecida no litoral e tardia na exploração do interior, diferentemente do que ocorreu com os domínios da Espanha.O autor chega a dizer, que Portugal exerceu um trabalho antes de feitorização do que de colonização, novamente criticando agudamente a Portugal e seus meios em detrimento da Espanha.
Esse interesse provinha talvez de um medo que a população tinha de Portugal se inferiorizar em relação à colônia, portanto eram pífios os esforços de modernização e o que se via era antes uma exploração ao modo que nos explicou Caio Prado Jr em sua Formação doBrasil Contemporâneo, onde afirma ser a colonização portuguesa apenas de exploração em beneficio externo.
No quinto ponto, o autor continua falando sobre as relações sociais e sua superficialidade, exceto nas relações familiares, o que caracterizou o paternalismo que era típico em sociedades rurais. Sérgio Buarque afirma que as relações do tipo patriarcais exercem uma educação rígida que ensina a criança a não desrespeitar as leis e ordens dois pais, o que levaria a uma inércia na capacidade de transgredir e por conseqüência evoluir (p144).Os comportamentos de aparência afetiva predominavam na sociedade segundo Antonio Candido nos lembra em resenha feita no ano de 1967.
Mais uma oposição vai ser tratada pelo autor, a das relações estado – família, que deveriam atuar em singularidade na verdade representava atraso que o autor alude aos mitos gregos de Creonte e Antígona para explicar. Por ser a sociedade patriarcal, pouco se dava atenção as leis do estado, sendo o circulo familiar criador das próprias leis a serem respeitadas por seus membros, e a particularização dos interesses estava impregnada inclusive em membros de funções do estado, que também eram afetados por esse predomínio das relações intimistas em oposição às coletivas.
Quando Sérgio Buarque cria o mito do homem cordial, afirma que a hospitalidade, generosidade, e a lhaneza no trato representam um traço do caráter brasileiro (p146), mas que essas características não estariam ligadas à civilidade, mas sim seriam atribuídas a um fundo emotivo transbordante. A superficialidade das relações social se estendia às obrigações religiosas. Essa explicação também é muito combatida por segmentos que procuram ver a questão da formação do suposto caráter cordial, porem devemos prestar atenção a obra de Sérgio Buarque, que é muito cuidadoso com as palavras.
Nesse capítulo sexto, o autor vai tratar da influência das características relatadas nos outros capítulos sobre a sociedade brasileira a partir da chegada da família real. Sérgio Buarque vai continuar tratando das relações de aparência nesse capitulo, agora no âmbito da intelectualidade, o que ele chama de saber aparente, que seria o saber apenas sem uso prático e objetivo.Também a valorização das profissões liberais teria sido causada pela decadência das classes agrárias dominantes.
O autor afirma que uma sociedade com tais aspectos comentados foi propícia à proliferação das idéias positivistas como as de Augusto Comte, a tradição seria incrementada com o ideal inflexível porem paradoxal, pois se tratava apenas de uma crença obstinada na verdade de seus princípios.Ele acusa os positivistas de um espírito negador, que em nada viria a positivar o pensamento brasileiro, nada teria a acrescentar.
O saber aparente, ligado ao exibicionismo, a importante aparência, teria segundo Sérgio sido a causa da proliferação dos ideais positivistas, estes atrelados à obediência, a disciplina paternal. A falta da intelectualidade desenvolvida pela opressão dos dogmas católicos e familiares teria levado também a sociedade a adaptar falsamente alguns ideais liberais presentes no séc. XIX. O ideal de solidariedade antes inexistente teria sido então importado e adaptado para a criação de uma falsa democracia, que continuaria servindo as classes dominantes em sua minoria e criando o mito do espírito democrático.A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal entendido.(p.160). Sérgio Buarque termina esta parte refletindo sobre as idéias liberais que teriam fomentado o movimento da independência, movimento este de uma minoria, uma elite que tomava todas as decisões, e com a independência deixava as massas de fora de qualquer decisão ou até informação.
Uma mudança, ou rompimento com a ordem tradicional viria a acontecer segundo o autor, com o evento da transferência da família real ao Brasil em 1808, trazendo certa modernização e ameaçando o patriarcalismo rural.Porem, a crença apenas nas idéias, e voltada ao desenvolvimento de um raciocínio de aparência, uma falsa inteligência que conduziria a sociedade a uma espécie de alfabetização que não viria acompanhada de um maior desenvolvimento.(p.166)
No sétimo e ultimo capitulo do livro, o autor marca a data da abolição como fim do predomínio agrário, o inicio de uma lenta revolução que estaria ligada ao afastamento do que ele nomeia de iberismo que estaria ligado ao agrarismo. Na conclusão do autor, a criação da identidade nacional está vinculada ao “aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um estilo novo” (p172), e a passagem da sociedade açucareira para cafeeira também representou a mudança do pensamento conservador, antigo, para o liberal, moderno, e também a passagem da cidade para centro econômico em detrimento do campo.
Sérgio Buarque acreditava que a nossa revolução estaria ligada ao distanciamento de um passado arcaizante e dominador representado pela colonização e ao desaparecimento das oligarquias, concentradoras de renda. O distanciamento do passado seria conseguido através da “revogação da velha ordem colonial e patriarcal, com todas as conseqüências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continua a acarretar” (p180).
O desenvolvimento cafeeiro, no oeste paulista, o desenvolvimento da comunicação e dos transportes através da construção de vias férreas criaria uma relação de interdependência entre a cidade e o campo, substituindo o total isolamento antes marcado pela ausência de um mercado interno e do crescimento polarizado e desordenado.
Tratando dos ideais da sociedade, o autor afirma que o modelo ideário arcaico implantado anteriormente, após a independência tentou ser substituído pelo modelo importado em parte das idéias da revolução francesa, o que teria sido problemático mais uma vez, causando apenas uma mudança de aparato, e não de substancia.(p179)
Chegando à sua época, Sergio Buarque vai relacionar a evolução das idéias políticas com a antítese entre o caudilhismo e o liberalismo, e o fortalecimento do personalismo, o que seria fator destrutivo à coesão da sociedade.Ele diz: “na tão malsinada primazia das conveniências particulares sobre os interesses de ordem coletiva revela-se nitidamente o predomínio do elemento emotivo sobre o racional” (p.182) e particularizaria inclusive a própria noção de solidariedade. É aqui que retorna o mito do homem cordial, que é emotivo, porem não é solidário, um dos paradoxos mais intrigantes da analise de Sérgio Buarque.
O autor conclui sua obra insinuando que existe ainda em sua época uma certa permanência do pensamento tradicional, que por ter sido a raiz da colonização influenciava tudo desde sua origem, sendo assim cooptadas e adaptadas idéias para sustentar um padrão de sociedade de origem patriarcal, rural e personalista. O caudilhismo esclarecido. Ele critica um possível quadro de um Brasil fascista, assistindo a propagação dos ideais integralistas que seriam reflexo do pensamento personalista, característica de toda uma evolução que é tratada ao longo do livro.Ele termina com uma reflexão sensivelmente pessimista sobre a situação do provável futuro do país, e se estivesse ainda vivo poderia confirmar suas previsões em tempos de uma falsa democracia corrupta e serviçal do capital estrangeiro.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Sérgio Buarque de Holanda

Por Jessé Chahad


Sérgio Buarque de Holanda nascido em São Paulo em 1902, faleceu aos oitenta anos e integrou a chamada geração de 30, que contou ainda com nomes como Caio Prado Jr e Gilberto Freyre, todos na tentativa de buscar elementos que definam a formação da sociedade brasileira contemporânea.Esses autores e suas respectivas obras de destaque (Formação do Brasil contemporâneo, e Casa-grande e senzala) dialogaram entre si na busca de uma análise da sociedade brasileira.
Participou do movimento Modernista de 22, tendo sido nomeado por Mário e Oswald de Andrade representante da revista Klaxon no Rio de Janeiro.

Viajou para a Europa, em 1929, como correspondente dos Diários Associados e fixou residência em Berlim, onde entrou em contato com a obra de Max Weber e assistiu aos seminários de Friedrich Meinecke.

Em 1957, recebeu o prêmio Edgard Cavalheiro do Instituto Nacional do Livro pela publicação de Caminhos e Fronteiras. Conquistou em concurso publico feito em 1958, a cadeira de História da Civilização Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, com a tese Visão do Paraíso - os motivos edênicos no descobrimento e na colonização do Brasil.

Foi o primeiro diretor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), eleito em 1962. De 1963 a 1967, viajou como professor-visitante para as universidades do Chile e dos Estados Unidos e participou de missões culturais pela Unesco no Peru e na Costa Rica.

Sérgio Buarque de Holanda morreu em São Paulo, a 24 de abril de 1982.Entre suas obras mais famosas estão: Raízes do Brasil (1936), Cobra de Vidro (1944), Caminhos e Fronteiras (1957) e Visão do Paraíso (1959). Sérgio Buarque de Holanda escreveu regulamente para a Folha de São Paulo entre 1950 e 1953.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Alimentação e sociedade

Por Jessé A. Chahad

Alimentação e sociedade

Parece-me razoável acreditar na teoria tradicional contida nos livros didáticos de História, na qual o homem primitivo, sua a afirmação como grupo dominante, e a reprodução da espécie humana foram proporcionados pelo aprendizado da agricultura através da prática da observação[1].
O plantio aliado à caça formaria as bases da cultura da alimentação humana, e proporcionaria o desenvolvimento de novas ferramentas, demanda das novas práticas alimentares[2]. A elaboração de bebidas e alimentos preparados cozidos é um exemplo.
O próprio conceito de sociedade pode ter surgido a partir da socialização dos alimentos, uma vez que em grupo, os homens deveriam administrar os recursos de maneira a fortalecer o grupo. A domesticação e cultivo passaram a gerar excedentes, que eram distribuídos em banquetes, e marcavam a celebração da colheita. Esse é o segundo aspecto ou caráter da alimentação a ser demonstrado aqui, o caráter social, ou agregador.
Alguns historiadores chegam a classificar a sociedade como fundamentalmente agrícola, principalmente a partir do século IX, levando em consideração o estabelecimento do sistema feudal, que proporcionaria o renascimento do comércio e um novo salto no progresso da civilização[3]. As especiarias assumem papel importante na história da alimentação, pois agregam valor simbólico antes inexistente a diversos alimentos, e seu comércio nas grandes navegações era destinado em sua maioria a um comércio de luxo, praticado durante a Idade Média e intensificado na era moderna. Diversos alimentos de usos restritos as camadas da aristocracia conferiam uma diferenciação social criada a partir de práticas alimentares.
O País da Cocanha, lugar utópico festivo, onde a comida era abundante e o trabalho não era necessário, onde existiam rios de leite e de vinho, queijos e pães eram obtidos sem dificuldade era não apenas uma utopia strictu sensu, mas um sonho que às vezes era perseguido como real pelos europeus.
Com a descoberta do novo mundo, criou-se uma possibilidade de reprodução do paraíso na Terra, sonho perseguido pelos cristãos, recém saídos da Idade Média e que agora poderiam enfim encontrar a Cocanha, a terra abundante de alimentos, festas, orgias que agora poderia lhe pertencer.
Sabemos através de várias fontes que a fome era uma dificuldade enfrentada sempre, quase que de forma cíclica pela população[4], e a natureza era muitas vezes severa sendo uma dificuldade a ser superada pelo homem para garantir a sua sobrevivência[5] e a de seus familiares. O clima temperado, frio, as chuvas fortes eram responsáveis pela pouca incidência de alimentos e consequentemente pelo enfraquecimento sistemático mesmo no sentido biológico da raça humana, sendo normal em escavações o alto numero de restos mortais de pessoas com estaturas franzinas e com deficiência de cálcio, uma característica que durante algum tempo foi quase que um estigma acoplado ao da fome: a subnutrição.
A onda de fome de 1315 alcança um numero de mortos que apesar das divergências em relação a sua exatidão, a historiografia concorda que foram números altos, maiores que a de outras ondas de fome anteriores[6]e marca uma ruptura em um processo de crescimento demográfico que havia lhe antecedido. Em suma, nesse período de breve crescimento demográfico, não cresceu paralelamente a produção de alimentos, e nem o avanço tecnológico necessário para isso[7], o que poderia explicar o surto de fome, que sempre reforça a idéia de se ter uma esperança relacionada a um futuro melhor, em um país imaginário, ou ainda no paraíso propriamente dito, visto que uma vida de sacrifícios era recompensada teoricamente com um lugar no céu cristão.

Os estudos dedicados aos herbários da era Moderna revelam que eram um tipo de publicação muito difundido no período, e tratava dos domínios animais, vegetais e minerais[8]. A história do desenvolvimento da botânica, da farmacologia se confunde com a história da alimentação, se considerar essas plantas como alimento. A palavra droga, deriva do termo holandês drug, que durante muito tempo foi usado para designar produtos secos, como nozes ou pimentas.
A partir da industrialização do sistema capitalista, mais uma vez os hábitos alimentares passariam por uma transformação. O período de guerras incrementou as pesquisas que buscavam uma solução para uma possível crise de falta de alimentos, dentro do contexto de catástrofe eminente criado pela Guerra fria. Os alimentos sintetizados supririam a demanda emergencial do contexto bélico na pior das hipóteses, porém ao final do conflito, com a vitória do capitalismo, tais pesquisas não poderiam ser desperdiçadas, e assim os alimentos industrializados precisariam ser difundidos na sociedade.
A evolução da ciência farmacêutica, portanto acompanhou o processo de sintetização pelo qual também a alimentação após as revoluções industriais. As ciências naturais foram suplantadas pela ciência industrial, e hoje qualquer prática que se utiliza dos conhecimentos antigos sobre curas a base de ervas ou alimentos é vista como puro charlatanismo e descrença. Claro que durante a Idade Média a Igreja deu inicio ao extermínio de religiões que se utilizavam das ciências naturais, mas após a revolução higienista foi o estado que se apropriou do monopólio da cura, com o estabelecimento da medicina moderna como ciência inquestionável.

Bibliografia

BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo. Séculos XV-XVIII. Rio de Janeiro. Edições Cosmos. 1970.

CARNEIRO, Henrique S. Amores e sonhos da flora. Afrodisíacos e alucinógenos na botânica e na farmácia. São Paulo. Xamã Editora. 2002.

HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos. O breve século XX. 1914-1991. São Paulo. Companhia das letras. 1994.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de; CARNEIRO, Henrique S. A História da Alimentação: balizas historiográficas, in: Anais do Museu paulista. História e cultura material. São Paulo. Edusp. 1997. V5.

PARKER, Geoffrey. (Org.). Atlas da História do mundo. São Paulo. Time Books. 1995.

PIRENNE, Henri. História econômica e social da Idade Média. São Paulo. Editora Mestre Jou. 1968.

OSGOOD, Robert E. (Org.) Os Estados Unidos e o mundo. Da Doutrina Truman ao Vietnã.São Paulo. Ibrasa. 1972.
[1] Geoffrey PARKER, Atlas da História do Mundo, p.35.

[2] Derek BIRDSALL, Carlo CIPOLLA, The technology of man, p.29.

[3] Henri PIRENNE, História econômica e social da Idade Média, p.15 a 30.

[4] Hilário FRANCO JUNIOR, A utopia da abundancia: A Cocanha, p.26.

[5] Georges DUBY, Guerreiros e camponeses. Primórdios do crescimento econômico europeu séc.VII a XII.,p.17.

[6] Henri PIRENNE, Historia econômica e social da Idade Média, p.200.

[7] Gerald A.J.HODGETT, Historia Social e Econômica da Idade Média, p125.

[8] Henrique CARNEIRO, Amores e sonhos da flora, p.23.
[9] Henrique CARNEIRO, Amores e sonhos da flora, p.177.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Utilidade da História: existe?

                                                                                  Por Jessé A. Chahad

Maquiavel certa vez decidira que deveria tecer uma “comparação entre fatos antigos e contemporâneos, de modo a facilitar-lhes (aos homens) a compreensão. Deste modo, meus leitores poderão tirar daqueles livros toda a utilidade que se deve buscar no estudo histórico” [1]. Inicialmente devemos entender que para Maquiavel, conduzido pelas tendências liberais de sua época, produzir uma utilidade para o estudo de História, seria o uso racional do estudo do passado, a fim de que não se cometessem os “mesmos erros” que haviam sido cometidos.
A busca pela melhoria da sociedade através da melhoria dos indivíduos deveria contar com as lições aprendidas sobre fatos históricos, incorporando uma produtividade e uma objetividade necessária a quase todas as questões modernas e contemporâneas. Niestzche afirma que a utilidade, ou valor de uso da história residiria no fato de que “Ele ( o homem) aprende com isso( história) que a grandeza, que existiu uma vez, foi, em todo caso, possível uma vez e, por isso, pode ser que seja possível mais uma vez; segue com ânimo sua marcha, pois agora a dúvida, que o assalta em horas mais fracas, de pensar que talvez queira o impossível é eliminada.[2]
A crítica é direcionada ao culto que os modernos demonstravam para com a Antiguidade Clássica, se referindo as civilizações ocidentais greco-romanas e seus feitos sempre glorificados e louvados de forma a serem tidos como referencial para uma sociedade teoricamente perfeita, que deveria ser tida como exemplo. A Historiografia do início do século XX nos remete ao trecho citado, se lembramos que Fustel de Coulanges em seu esforço de confirmar a existência de uma utilidade para a História, lembra Maquiavel com ressalvas ao afirmar que a “a história não resolve problemas: ela nos ensina a examiná-los (...) como é preciso agir para observar os fatos humanos” [3].
A busca pela verdade era fundamental para a criação de uma utilidade para a História e encontrava barreiras nas narrativas que mitificavam o passado antigo e escondiam seus defeitos e erros, em uma verdadeira operação ideológica que agia em favor da civilização européia ocidental e seus objetivos imperialistas em relação a entre outros feitos, as investidas no ultramar. Este excerto de Marx resume bem a reflexão acerca deste fenômeno: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob as circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e as coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes de empréstimo os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada[4]
Francisco Murari nos lembra que desde Tucídides e seu relato sobre a Guerra do Peloponeso, a mitificação do passado, ou do indivíduo deve ser evitada, pois desviaria o objetivo maior, o relato da verdade: “Por tais modos narrativos, consagrados por poetas e logógrafos, a narração de histórias sujeitava (e perdia) sua finalidade enquanto memorização de feitos humanos ao sacrificar a expressão da verdade dos acontecimentos em prol da fruição do que era do agrado do público presente a quem fossem contadas. Ordenação da narrativa das ações dos homens pelos efeitos do mito que frustra a valia de suas histórias fazendo desvanecer, pelo deleite fugaz do presente, o alcance perene a que a memória humana almeja por (i)mortalidade.”
Se utilizarmos um anacronismo a nosso favor, poderemos relacionar o modo narrativo mitificante criticado por Tucídides ao modo de narrativa utilizado pelo cinema de Hollywood para agradar seu público e que por diversas vezes se valendo de seu caráter artístico refaz à sua maneira diversas passagens históricas, momentos estes que detém esta alcunha por serem freqüentemente considerados significativos para a mudança da sociedade através dos tempos e que ganham novas leituras, novos significados, e procuram servir a um determinado interesse ideológico e / ou comercial.
Na contramão desta tendência, podemos citar os filmes do diretor americano Clint Eastwood, Letters from Iwo Jima e Flag of our Fathers .O ator que antes era tido como o estereotipo de Dirty Harry deu lugar a um diretor que traz em seus filmes questões dramáticas recheadas de simbolismos e forte apelo emocional, porém sem recorrer ao sensacionalismo. Eastwood parece se utilizar da credibilidade obtida com sua carreira irretocável para atingir o senso comum do público, neste caso com dois filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, especificamente sobre os conflitos travados no Pacífico entre Estados Unidos e Japão. Com um filme falado em inglês e outro em japonês, fica evidente a intenção de situar cada narrativa sob um ponto de vista, ignorando que o fato de que a versão da história contada pelo foco dos japoneses produzida por um americano poderia ser tendenciosa.
Longe de tentar fazer julgamentos, não devemos colocar em dúvida o fato de que o diretor sabia que não era isento ao olhar o passado, e não poderia ter a visão direta do passado, preterida pelos modernos, desejo reforçado mais tarde pelos que buscaram uma verdade histórica e imparcial, praticamente inexistente na realidade. Eastwood mostra que o bem e o mal são duas faces da mesma moeda, ou se quisermos ambos os conceitos existem como trazidos na Ilíada, dentro de um caldeirão onde saem de lá em pares, em outras palavras são inseparáveis, o bem sempre traz consigo algum mal e vice-versa, como também já apontou Maquiavel. Antigos, modernos e contemporâneos se sobrepõem e se confundem na tentativa de explicar dois conceitos aparentemente simples, mas de complexidade histórica.
No final do filme o protagonista já não mais foge do inimigo americano, e sim de seus próprios companheiros. Derrotados, os japoneses acreditam ser heróis ao se suicidar, ou melhor, “morrer lutando”, como traz o filme, e certamente já ouvimos relatos sobre os pilotos kamikaze, sopro divino, que se projetavam contra divisões inteiras do inimigo, se sacrificando pelo bem maior, criando o mito do herói de guerra, por sua vez remetendo a própria antiguidade japonesa.
Ao recusar tal tradição, a personagem se depara com a inversão automática de valores, e a rendição aos americanos, que afinal não podem ser tão ruins assim, parece opção razoável para fugir da ameaça de seus companheiros suicidas. Bem e mal se confundem, e ao conseguir escapar das cavernas e trincheiras onde a morte era certa, a busca pela sobrevivência acima de tudo, o leva a se render aos americanos, agora portadores dos princípios do bem, do novo mundo, da civilização ocidental, gloriosa e portadora da liberdade, inspirada no mundo clássico greco-romano. Ao ser capturado, porém o personagem é executado sumariamente, de maneira usual, é desprezado o seu desejo de rendição; Sua morte traz a idéia novamente de que não existem bem ou mal, e sim os dois juntos, de acordo com o prisma pelo qual procuramos os iluminar.
No outro episódio, Flags of our fathers, Eastwood traz a mitificação do passado histórico através da circulação de uma fotografia produzida durante a guerra. A imagem obtida pelo correspondente de guerra Joe Rosenthal é uma fotografia tida como documental, e figura hoje em diversos volumes sobre a Segunda Guerra, e tem status de representação oficial da conquista de um determinado monte por parte das tropas americanas. Virou um monumento fúnebre, muito visitado por veteranos, em dos cemitérios que mais contem baixas de guerra nos Estados Unidos.
Porém, o filme demonstra que o contexto da imagem foi produzido de maneira diferente do que mais tarde foi circulado de maneira intensiva pela imprensa norte – americana. A construção de imagem heróica daqueles soldados empunhando a fincando no solo a bandeira americana foi utilizada como instrumento para convencer a sociedade de que poderiam vencer a guerra, e serviu como fôlego extra para uma retomada de combates, com mais vigor, pois lutavam do “lado do bem”. A mitificação da conquista americana esconderia as carnificinas executadas pela marinha, e principalmente pelos bombardeios de napalm, responsáveis pela destruição física de mais de 40% do território japonês.
De certa forma, o olhar que Eastwood lança ao criar uma narrativa de cunho histórico, este de acordo com o olhar tucididiano, que “volta a plenificação de sua valia para o futuro, quer imediato quer longínquo, porque os homens desta temporalidade a reconheçam no presente de suas ações”. Mais uma vez voltamos a uma utilidade atribuída ao estudo histórico.
A crítica feita pelo diretor é produzida em um momento em que o seu país, se julga mais do que nunca, o representante do mundo do bem, dos ideais invejáveis e gloriosos, que foram introjetados em diversas culturas mundo afora, sob forma de conquistas bélicas, impondo a democracia e a liberdade, estas forjadas à sua maneira, escondendo interesses comerciais e produzindo anomalias históricas, como a tentativa de destruição do mundo islâmico.
Para estabelecermos uma comparação, um outro filme que vai contra a produção de mitos, é Diário de motocicleta, dirigido pelo brasileiro Walter Salles. O diretor relata um período da vida de Ernesto Guevara, El “Che”. Ao invés de criar um herói de guerra, Salles cria uma narrativa em que o protagonista ainda jovem e antes de se dedicar a luta armada pela revolução, é retratado como um estudante de medicina, caridoso e dedicado, que se mistura aos pobres e leprosos, em busca de curá-los, como Cristo. A desmistificação da imagem que permaneceu após a Revolução Cubana, de um Che Guevara líder heróico que comandou a vitória à custa de métodos violentos, dá lugar à criação de uma outra imagem, que por sua vez reside na característica humana do agente histórico mais influente na visão dos historiadores modernos: o individuo.
Por detrás da sólida carapaça criada pela historiografia que procurou durante muito tempo trabalhar a história através da produção de mitos, a fim de produzir e determinar valores para a sociedade atual, reside a instabilidade e a especificidade inerente a cada ser humano, e sua historicidade não deve ser desprezada, assim como a história das mentalidades deve ser enfatizada na busca de um maior entendimento sobre os fatos ocorridos nas sociedades do passado. Benedetto Croce radicaliza a questão, afirmando que toda história é contemporânea, pois todo o interesse depositado em seu conhecimento é causado por um “interesse da vida do presente”[5].A História Magistra Vitae, conceito difundido e estudado nas academias é presente desde o período clássico até os dias de hoje.
Cinema e História: O Filme e suas possibilidades
No campo do ensino da História, os filmes de cunho histórico são fontes inesgotáveis de possibilidades de propor discussões e provocar a reflexão no estudante.
Se considerarmos que o caráter visual da sociedade atual se sobrepõe aos demais sentidos na percepção e no entendimento da realidade, é razoável a afirmação de que o Cinema é atraente e atinge quase em sua totalidade o dia a dia do estudante, seja do ensino regular ou mesmo superior. A partir da exibição de filmes que trazem em seu conteúdo fatos históricos a serem estudados nos programas tradicionais, o profissional dedicado ao ensino de História consegue ao menos atrair mais atenção para o assunto, o que já é desejável em tempos de tão grande desinteresse pelo estudo por parte dos alunos.
O papel do cinema como formador de opinião, assim como o papel do mercado no sentido de se criar um imaginário e sua mercantilização estarão inseridos no contexto do trabalho, procurando assim encontrar um sentido na produção de obras de acesso ao público em geral que procuram criar um universo mitológico, às vezes maniqueísta e que pode servir aos interesses das grandes empresas, e é de importância do estudo dos historiadores, pois toca na questão da mercantilização do ensino, no sentido de transformar um pedaço da historia em um produto.
A partir deste primeiro momento, a intenção seria realiza debates acerca do assunto trazido pelo filme, e como os fatos foram tratados, a fim de identificar possíveis interpretações e pontos de vista expressos por detrás das imagens, suscitando a curiosidade que levará naturalmente à pesquisa sobre o tema. O filme não seria abordado artisticamente, mas como produto, imagem-objeto que procura compreender não só a obra, mas a realidade que ela representa[6].
A tão criticada indústria cinematográfica hollywoodiana serve de exemplo não apenas por dedicar tantos recursos à produção de filmes “históricos”, que abrangem a sua própria História recente, além de atingir temas Clássicos, como a Guerra de Tróia, ou ainda Rei Arthur, que de longe procuram se inserir no caráter do cinema real, de fidelidade, mas buscam a verossimilhança em suas narrativas, que são sucessos de bilheteria e despertam de alguma forma, por menos louvável que seja, o interesse sobre temas históricos.
Uma questão a ser levantada, por exemplo, pode ser o fato de como algumas lideranças mundiais se apropriam de valores, como a liberdade, igualdade e democracia, e, além disso, constrói uma nova significação destes valores, a fim de justificar um propósito, como no caso da Segunda Guerra, a necessidade da emergência dos Estados Unidos como potência militar e econômica, que deveria liderar o mundo com seus ideais de justiça e libertação.
Sobre a relação entre história e cinema, Marc Ferro nos diz que o cinema tem o poder de se situar a serviço de uma causa, de uma ideologia, explicitamente ou sem colocar abertas as questões, e por isso seria objeto de desejo de controle pelo Estado que procura dominá-lo a seu favor, talvez como elemento formador de opinião. Para o autor, os filmes operam com um modo de ação eficaz e dependem tanto da sociedade que produz o filme, quanto da que o recebe. O autor afirma que tanto as civilizações ocidentais como as orientais tiveram atitudes claras de tentativa de controle do cinema como instrumento de formação de opinião, e cita o exemplo de que em 1975, a exibição de um filme letão na ex-ORTF ( Office de Radiodiffusion-Television Française ) sobre campos de concentração na então União Soviética, o que causou uma intervenção imediata do Partido Comunista Francês. [7]
Ainda hoje podemos identificar essa prática na sociedade norte-americana, altamente militarizada e sempre disposta a endossar um conflito, uma invasão de um país qualquer que não dê liberdade ao seu povo, que não exerça a democracia. Por outro lado, os verdadeiros motivos que deflagram a maioria dos conflitos desde a Primeira Guerra, são quase sempre relacionados às questões de territorialidade, em outras palavras, à conquista e dominação de territórios que dispões de recursos estratégicos, ligados a algum setor da economia.
A produção de filmes de guerra é quase concomitante com a produtividade da indústria bélica estado-unidense, e ambas aumentam seus lucros, e renovam suas tecnologias de maneira impressionante, que nos levam a crer que a relação entre Cinema e História está muito mais presente no dia a dia do que podemos imaginar, e que a construção da memória de um povo, mais ainda, a construção de um senso moral comum de justiça e caráter, passa pelo crivo da indústria cultural e com ela se entrelaça, pois fazem a cultura visual e a sociedade personagens de um mesmo longa metragem.
Sabemos que os filmes não têm a obrigação de serem fiéis à história, porém em um artigo publicado em 1982 na Revista “Médiévales”, François-Jérôme Beaussart faz uma crítica acerca de Excalibur e diz perceber no filme cenas ridículas e fora de época, o que significa uma construção errônea feita sobre o período, o que pode nos ajudar a entender o motivo de sua produção. Diz ele: a reconstituição de dança medieval, que apresenta enormes cavaleiros passando sobre seus ombros largos frágeis senhoritas durante uma espécie de ‘be-bop’ endiabrado. [8] Ou ainda, a ridícula prestação coreográfica que a pobre Igerne, obrigada a executar uma dança provocante e lasciva sob o olhar lúbrico de cavaleiros bêbados, que Beaussart qualifica como um número de music-hall que não teria envergonhado as Salomés dos estúdios da Metro-Goldwin.[9]
Para os historiadores, mais útil do que condenar a presença de duendes e dragões, personagens comuns em filmes que remetem à Idade Média, é explorar a potencialidade deste tipo de documento, e como ele pode ser útil para a produção de conhecimento. Assim considerando, uma utilidade para a História poderia ser produzida a partir da proposta de reflexão acerca dos fatos que mais chamam a atenção da sociedade na longa duração. A indústria cinematográfica enxerga essa utilidade possibilitada pela História, e com diversos interesses traz fatos do passado para serem revistos, e à sua maneira participa ativamente da relação entre o individuo e a história, relação importante para entendermos os humanistas da era moderna.

Humildes conclusões.
A partir do debate aqui suscitado por alguns temas destacados do curso, procurou-se demonstrar que apesar de todas as ressalvas, não podemos atribuir uma utilidade fundamental representada pelo estudo da história. Refletimos sobre algumas questões que procuram definir essa utilidade, ou fazer apologia a ela.
Independente de existir uma utilidade única ou principal para a prática do estudo do passado, será razoável admitir que a utilidade da História não resida em si mesma, nem talvez no fato de podermos aprender com erros do passado a fim de evitá-los no futuro. A utilidade é produzida pelo próprio contexto construído por quem a produz. Em outras palavras, “fazer história é contar uma história” [10]. A superação da história – narrativa pela história-problema não se define por um objeto de estudo, mas sim por um tipo de discurso.
Se quisermos ser audaciosos em nossa analise, poderemos atentar que há milênios o homem vem se perguntando se pode aprender com o passado a ter uma vida melhor no futuro. O tempo passou, e os erros históricos se repetem e se multiplicam pela humanidade, levando a uma instabilidade talvez inédita dentro deste período.Seria inocência de nossa parte acreditar que o homem não consegue aprender com seus erros. A questão pode ser : ele quer parar de cometer esses erros históricos? Ou ainda: serão esses equívocos considerados erros por quem os pratica, ou cabe àqueles que sofrem com as conseqüências de sua prática apontá-los, a fim de que não se repitam?
O que tentou ser demonstrado aqui foi que a busca pela mitificação do passado, através da glorificação de momentos históricos e criação de heróis esteve presente tanto nos antigos quanto nos modernos. No que convencionamos chamar de contemporaneidade, encontramos vestígios que confirmam essa intenção. Os documentos produzidos pela sociedade atual, sejam visuais, ou de outra natureza devem ser problematizados pelo historiador na medida em que não estão livres das ações históricas sofridas pelo homem, o seu agente de modificação mais determinante.
Se a história tem uma utilidade, alguns setores da sociedade já se apoderaram dela, porém cada qual criando a sua própria utilidade para ela. Cabe aos historiadores talvez o papel de identificar esses usos da história, e e estudar como isso influência na formação da sociedade, dentro do seu tempo respectivo, e comparar com ponderação com algum fato do passado histórico. Mas não pela busca da verdade, como preteriam os modernos, pois o conceito de verdade é deveras delicado para ser tido como dogmático. Mas sim , pelo interesse na produção de conhecimento e proposta de reflexão, tentando entender melhor o homem, pois este na condição humana é imperfeito e está distante do mundo idealizado e glorioso idealizado sempre por um passsado inatingível a ser atingido.











Bibliografia
ARENDT, Hannah – Entre o Passado e o Futuro, 2a. edição, tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida, 1979.

BEARD, Charles A. That noble dream, The American historical review. New York, 41 (1) :, 1935

CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica in: A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Meneses, Rio de Janeiro, 1982.

CHARNEY, Leo & SCHWARTZ (orgs), Vanessa R. O cinema e a invenção da vida moderna, Cosac & Naify, São Paulo, 2001.


COULANGES, Fustel de , Préface. In: Questions historiques: revues et complétées d´aprés lens notes de l´auteur par Camille Julian, Paris, Librarie Hachette, 1923.

FERRO, Marc, Cinema e História, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992


GRUZINSKI , Serge, La Guerra de Las Imagenes. De Cristóvão Colombo a “Blade Runner”(1492-2019), tradução de Juan José Utrilla, México , Fondo de Cultura Econômica, 1990.

MAQUIAVEL – Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, tradução de Sérgio Fernando Guarischi Bath, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1979.

MENESES, Ulpiano Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório”. Revista Brasileira de História, ANPUH, São Paulo, 23, 2003.

NIETZSCHE, Friedrich, ”Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida”. IN Obras Incompletas. Seleção de textos de Gérard Lebrun e tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo, Editora Victor Civita, 1974.
[1] Nicolau MAQUIAVEL – Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, p.17-18.

[2] Friedrich Nietzche, Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida. p. 66-69.


[4]Karl MARX – O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann

[5] Benedetto CROCE, História y crônica, p.11-22
[6] Marc FERRO, O filme: uma contra-análise da realidade? In: LE GOFF, J. e NORA, P. (Orgs) “História: novos objetos”, p.203.

[7] FERRO, Marc. Cinema e História, p.15.

[8] Beaussart, F.-J.. “Mass Media et Moyen Âge: à propos du film: ‘Excalibur’”. In: Médiévales, 1, 1982, p. 34.

[9] Idem, p. 35.
[10] François Furet, A oficina da História, p.81